Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 30/10/1974.
Zoé:
— Desta janela panorâmica, às quatro horas da tarde, estou contemplando uma violenta ventania que ergue em fumaceira a terra dos campos de futebol do Aterro, tangendo-a aos rodopios na direção do Obelisco e do Museu de Arte Moderna. O mar se agita numa infinidade de franjinhas brancas, e os longos, finos postes de cimento, mais altos que a mais alta palmeira imperial, se torcem e balouçam numa fragilidade de bambus. Como numa delicada apreensão de Katherine Mansfield, nosso sistema nervoso pressente a felicidade. Há no ar, convulsionado, um convite à dança, ao voo do pássaro, ao descabelamento orgasmático das menininhas de longos cabelos soltos. As coifas dos coqueiros estão loucas, sugerindo o bailado de um espantalho mortalmente ferido.
Sinto-me tão gratuitamente feliz, e estou escrevendo tão bem que, se tivesse um assunto, seria capaz de produzir agora uma obra-prima. Mas o que é belo nesta hora é meramente sua gratuidade feérica, sob o céu de um azul esmaecido e sereno. Lembro- me, sem razão alguma, de um verso de Ferreira Gullar: “As crianças riem na estação das frutas, Vina, o sol é alegre”. Uma folha de jornal esvoaça veloz, com uma elegância ou intencionalidade de gaivota.
Se calhar, após este inusitado e breve espetáculo, choverá na porteira da noitinha uma chuva leve de lágrimas quentes, com gestos de quadris de odalisca. Será outro cataclisma benfazejo, desses que só as crianças e os namorados sabem aproveitar. Uma chuvinha que molha o rosto e os pés da moça enamorada que vai de sandálias, inclinada no ombro do seu companheiro. Ah! se essa for a primeira chuvinha fina e cálida que eles tomam juntos, eles que se conheceram não faz muitos dias, e se reconheceram, e se telefonaram, e tiveram uma pequena briga, e se reconciliaram, e agora se vão inclinados ao vento, e vem a chuvinha como um presente inesperado —um luxo que ambos prefeririam adiar para um dia em que suas relações estivessem mais difíceis... Nem tudo são flores quando tudo são flores: sucede à alegre chuva descer, esbanjando-se, sobre corações já de si recheados de felicidade.
Estou aqui pintando o momento que desabrocha além da janela panorâmica, descrevendo- o em máxima velocidade, à maneira dos impressionistas, quando um companheiro pouco lírico anuncia e comenta: “Está passando. Passou. Foi apenas um espirro da Natureza”.
Olho e confiro. Passou. A paisagem descansou. O mar está sereno, os coqueiros lentamente despertam, fatigados, de sua convulsa balalaica; os postes de cimento já não balançam, a tarde voltou a girar nos eixos.
Ora vejam só. A duração da felicidade — uma felicidade corporal, na qual a esperança tem sabor de aniquilamento e o próprio amor é meramente uma vertigem —a duração dessa plenitude não vai além da túrgida lucidez da flecha, no instante mesmo em que o arco relaxa e ela segue ao encontro do alvo duro, situado aquém de qualquer ilusão.
Ora vejam, ora vejam só!