Periódico
Manchete, nº 429
Publicada também em: livro Homenzinho na ventania, de 1962.

Em geral as pessoas possuíram automóveis e se recordam de todos eles. Eu possuí janelas e ajuntei para a lembrança um sortido patrimônio de paisagens. Minha primeira providência em casa nova é instalar meus instrumentos de trabalho ao lado duma janela: mesa, máquina de escrever, dicionários, paciência. Além de pequenos objetos familiares: um globo de lata, uma galinha de barro, um Gorki de porcelana, um Buda de marfim e três cachimbos que há muitos anos esperam aparecer em mim o homem tranquilo e experiente que fuma cachimbo. A janela também faz parte do equipamento profissional do escritor. Sem janelas, a literatura seria irremediavelmente hermética, feita de incompreensíveis pedaços de vida, lágrimas e risos loucos, fúrias e penas.

Tive muitas janelas, e nenhuma delas mais generosa e plena do que esta de que me despeço na manhã de hoje. Amanhã cedo mudarei de casa, de janela, e até de alma, pois o meu modo de ver e viver já não será o mesmo fatalmente. Não falo de mim, mas do que foram as janelas por meu intermédio.

Quando era menino, nunca olhei pela janela, mas fazia parte da paisagem dum quintal, doce e áspero a um só tempo, com seus mamoeiros bicados pelos passarinhos, as galinhas neuróticas em assembleia permanente, o canto intermitente do tanque, e o azul sem morte. (Comme le monde était jeune, et que la mort était loin!) Criança do meu tempo, do tempo das casas, só chegava à janela em dia de chuva, amassando o nariz contra a vidraça, para ver o mistério espetacular das águas desatadas, as enxurradas maravilhosas, as poças onde os moleques pobres e livres podiam brincar com euforia.

Portanto, só à medida que ganhamos corpo e tempo vamos aprendendo a conhecer a importância das janelas. Morei em Belo Horizonte, no Leme, Copacabana, Leblon, Botafogo, Silvestre, andei aí pelo Brasil e por outros países. Meus olhos deram para ruas quietas ou frenéticas, pátios melancólicos, morros cobertos de mataria, pedaços de mar. Vi coisas, muitas coisas, só não vi a linda mulher nua que os outros homens já viram de suas janelas. O resto eu vi. Vi um garoto pequeninho comandando o mundo de cima dum telhado, vi um afogado dando à praia ao amanhecer, vi um homem batendo numa mulher, vi uma mulher batendo num homem, vi auroras profusas e chamejantes, vi poentes dramáticos, vi uma menina morrendo num pátio, vi as luminárias inquietantes dos transatlânticos, as traineiras indo e vindo, vi operários equilibrando-se em andaimes incríveis, vi um general a bater-se com um soneto, vi a tormenta, o sol, a tarde cristalina, o verde, o cinza, o vermelho, a folha, a flor, o fruto, o farol da ilha, o féretro passando, a moça saindo para as núpcias, a mãe voltando da maternidade com um filho, o bêbado matinal, o casal de velhinhos crepusculares, o mendigo irrompendo pela rua como um versículo do Novo Testamento, vi através de minhas janelas todas as formas inumeráveis da vida, e a noite que chegava para engolfar o mundo em escuridão.

Buscava um lugar que me servisse e encontrei Ipanema. Já me mudei muitas vezes dum bairro para outro, já me mudei até de cidade, mas, nos últimos anos, só tenho trocado um lugar de Ipanema por outro lugar em Ipanema. Ando cansado de andanças, isto é, a idade vai chegando. Não quero mais ir, quero ficar; não quero mais procurar, quero conhecer o que já encontrei; para quem sou, as alegrias e as tristezas que já tenho estão de bom tamanho.

Vou perder dentro de poucas horas esta magnífica janela, incomparavelmente a melhor peça deste apartamento, e a mais vivificante de todas as janelas em que trabalhei e morei. Peço pois um minuto de silêncio, um minuto de silêncio em derradeira homenagem aos seus telhados de limo lá embaixo, minhas amendoeiras cambiantes, meus pinheiros líricos, minhas gaivotas, meu mar, minhas ilhas, minhas vagas, meus dias de ressaca, meus dias de calma, meus barcos; dou adeus para o meu mar noturno, invisível e trágico, e adeus para este mar cheio de luz.

paulo-mendes-campos
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