Chico Buarque na escadaria do Teatro Paramount, São Paulo-SP, década de 1960. Fotógrafo não identificado. Coleção José Ramos Tinhorão/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Quarta agora, 19, Chico Buarque completa 80 anos. Para contribuirmos com a merecida festa que se celebrará em torno do compositor, destacamos algumas crônicas de Clarice Lispector dedicadas a ele – que, aliás, pode até ser considerado um colega de ofício, pois foi cronista em duas oportunidades. Do seu autoexílio na Itália, Chico escreveu cerca de 12 crônicas para o Pasquim, entre 1969 e 1970; e da França, durante 40 dias, cobriu a Copa de 1998 para os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo.
Mas vamos ao que interessa. Chico e Clarice se conheceram em 1968, numa noite em que, para o espanto de todos os frequentadores do Antonio’s, habitat gastronômico da intelectualidade artística do Leblon, a escritora adentrou o bar de repente. Foi logo recepcionada pelo colega José Carlos Oliveira, um dos mais assíduos frequentadores da casa. Passeando a vista pelo recinto, Clarice identificou Chico mais ao fundo e confessou ao amigo: “Quando meus filhos souberem que eu o vi, vão me respeitar mais”. Àquela altura, tendo estourado com “A banda” e depois com “Roda viva”, o jovem compositor já era mesmo isso tudo e estava a poucos meses de receber o título de “única unanimidade nacional”, dado por Millôr Fernandes. Carlinhos Oliveira, chegado de Chico, tratou de convocá-lo à mesa. “E eu que estive lendo você ontem!”, disse para Clarice, surpresa, ao juntar-se aos cronistas.
Uma pena não sabermos dos assuntos cruzados naquela conversa. Levando em conta a presença de espírito dos envolvidos, é bem provável que não tenha sido nada muito além de algumas breves trocas de elogios e confissões mútuas de admiração. Ela, como tantas, se encantava com a personalidade do cantor – “Chico é lindo e é tímido, e é triste. Ah, como eu gostaria de dizer-lhe alguma coisa”, escreveu, “que diminuísse a sua tristeza”. E ele, caladão, ao mesmo tempo em que se intimidava com a presença quase exótica de Clarice, era atraído por sua força um tanto quanto magnética.
Clarice saiu do bar com uma ideia: chamar Chico e Carlinhos para visitá-la em sua casa. “Não sei se ela irá adiante”, registrou na crônica “Chico Buarque de Holanda”, publicada no Jornal do Brasil no dia seguinte. A ideia não só foi adiante como se aprimorou: a visita virou um jantar, e a lista de convidados ganhou o nome de Vinicius de Moraes. Na noite do evento, como a anfitriã tinha advertido que em sua casa não havia bebida, o trio tratou de se abastecer até as tampas no Antonio’s. De lá, certamente embriagados, rumaram para a ceia.
Na sala, os quatro passaram horas numa conversa fiada de pouca fluidez. Nenhum dos três homens sabia lidar bem com o desconcerto que Clarice impunha, com seus olhos expressivos e suas perguntas diretas. Vinicius, que tinha uma queda por ela, muito menos. Tímidos e intimidados, puxavam assuntos que mal davam conta de atravessar o ar denso do ambiente. O tempo foi passando, o efeito do álcool se dissipando, a fome batendo, até que, à porta da madrugada, a anfitriã agradeceu a visita e fez menção de se recolher. E então os convidados se despediram de barriga vazia: o jantar oferecido por Clarice Lispector nunca foi servido.
Só anos depois Chico compreendeu a grandeza literária de Clarice, quando se dedicou pra valer à leitura de sua obra – o seu exemplar autografado de Água viva é todo anotado. “Se tivesse a dimensão da Clarice Lispector naquela época, teria mais pânico do que tive, porque ela era uma pessoa que me deixava um pouco assustado”, disse certa vez, para a revista Caros amigos. Um desses sustos aconteceu quando Clarice o entrevistou para sua coluna na Manchete. De repente, depois de mencionar que fazia versos desde garoto, o compositor recebeu a tarefa incontornável de fazer um poeminha na hora. "Para você não se sentir vigiado, esperarei na copa até você me chamar”, aliviou a entrevistadora, retirando-se. Ou vai, ou racha. E Chico foi: “Como Clarice pedisse/ Um versinho que eu não disse/ Me dei mal/ Ficou lá dentro esperando/ Mas deixou seu olho olhando/ Com cara de Juízo Final”.
Sobretudo nos finalmentes dos anos 60, o compositor foi presença recorrente nas colunas da cronista, sempre retratado carinhosamente, num afeto que ele classificou como quase maternal. Em “Oi, Chico!”, Clarice dá notícia ao amigo da carta que recebera de uma leitora do Rio Grande do Sul. A moça pedia a gentileza de ser avisada do próximo encontro dos dois. Assim, tomando um avião direto para o Rio, ela conheceria seus ídolos de uma viagem só. “Mando-lhe um beijo e tenho certeza de que Chico lhe manda outro”, respondeu Clarice. E arrematou, para o infortúnio da fã: “Numa quarta-feira, às 11:30 da noite, dei um beijo hippy em cada face de Chico Buarque, nas dimensões de 7x4 centímetros, com batom cor de carmim”.
Mais de 50 anos depois, foi a vez de Chico transformar Clarice em personagem sua: “Para Clarice Lispector, com candura” é um dos contos do seu livro Anos de chumbo, de 2021. Ficção e realidade se confundem na narrativa protagonizada por um jovem poeta que, obcecado pela obra de Clarice Lispector, decide mostrar a ela alguns de seus poemas inéditos. Os dois passam a se encontrar no apartamento da escritora, cujo olhar sempre fixo nos olhos do menino, mais o longo silêncio desconfortante, lembram experiências pessoais do autor. Mas isso é só o pretexto. O que se desenrola, a partir daí, é muito mais denso e interessante. Se ainda não leu o conto, recomenda-se. E se já leu, eis uma desculpa para a releitura – afinal, folhear a obra de um escritor é uma das melhores maneiras de celebrá-lo.
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Nota do editor: Não deixe de ler a crônica “Do amor futuro”, do citado Carlinhos Oliveira. Nela, aparecem Rubem Braga, Tônia Carrero e o nosso aniversariante, todo contente por ter acabado de colocar letra na música “Eu te amo”, parceria com Tom Jobim. Não era pra menos.