Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 05/11/1980.
Uma ventania morna afligia os loucos mansos, e eles provocaram distúrbios pitorescos em Copacabana, Ipanema e Leblon. Observei pessoalmente três deles e ouvi falar de um outro que fingiu agredir, em plena rua, o cineasta Fernando Amaral, mas era só para assustar. Fernando me contou esse incidente no Antonio’s, onde decidimos ficar papeando, já que a noite nas ruas estava entregue a esses maluquinhos inofensivos.
No bojo da madrugada, chegou Tônia Carrero. Cinco minutos depois, chegava Rubem Braga com uma morena de nome Cynthia, e pouco depois surgia no salão o Chico Buarque de Holanda. Nessa altura, tratei de escutá-los com ouvido de colunista.
Tônia Carrero pretende montar um espetáculo durante o qual, atuando sozinha, contará a história do teatro, começando pelos gregos e chegando ao teatro do absurdo. Os dramaturgos brasileiros não serão esquecidos. Há um poeta escrevendo o texto. Tônia tenciona apresentar-se às plateias de todas as capitais brasileiras. Ela está um pouco triste por não ter podido aceitar o papel que lhe foi oferecido por Joaquim Pedro de Andrade no filme sobre Oswald, também Andrade e também antropófago cultural como Joaquim.
Chico Buarque de Holanda estava particularmente feliz, pois acaba de colocar versos de extraordinária beleza numa canção de Tom Jobim. Ele que é tímido, cantou para nós. A música se chama Eu te amo, vai entrar no filme do mesmo nome dirigido pelo Arnaldo Jabor, e é uma valsa. Infelizmente, não obtive a letra. Mas pedimos bis, no Antonio’s aconchegante da madrugada, e já sei muitos versos de cor. Tônia observou:
— Esse menino (o Chico Buarque) é teatral. Em toda música dele se descreve uma cena. Vocês sabem que, quando ele nasceu, a mãe dele me mostrou o bebê e não me disse que aquela coisinha fofa era o Chico Buarque? Me apresentou como se fosse um bebê qualquer.... Francamente, isso não se faz...
Rubem e Tônia decidiram que algumas imagens da canção eram surrealistas. Com efeito, considerando separadamente alguns grupos de versos, que descrevem por inteiro uma situação, tem-se a impressão de que Chico Buarque teve visões insólitas, atuando numa faixa de percepção e sensibilidade encontradiças no melhor e mais ousado Buñuel e no supremo realismo de cabeça para baixo que assinala Magritte.
Trata-se de um homem que se recusa a abandonar sua mulher. É uma declaração de amor desesperada, podendo ser comparada, no campo das relações amorosas em crise, ao avesso de um pedido de habeas corpus. Chico, brincando, diz que Tom Jobim está doente de ciúmes, por não ser ele o autor desses versos.... Mas, falando sério, deixa claro que alcançou nesse poema uma plenitude técnica e artística que até então lhe parecia impossível. Não creio de todo nisso: há momentos altíssimos em sua obra já conhecida. Mas é ele quem o afirma, ele é o artista, só ele sabe onde quer chegar. Lambia a cria, como se diz, cantando três e mais vezes a famosa valsa que será gravada por ele mesmo. E a cada bis nós a achávamos ainda mais bela.
Rubem Braga se queixava de Chico, alegando que este exagerava, pois um artista de seu quilate não precisava ter olhos azuis.
Me lembrei de Bastidores, a canção que ele fez para Cauby Peixoto, e ainda do Lança perfume, de Rita Lee, esse maravilhoso poema erótico sem qualquer traço de vulgaridade — uma descrição, em tangente, do bailado do homem e da mulher na cama. Uma e outra canção se inserem num momento privilegiado de nossas almas. Não sou eu o primeiro a dizê-lo: as pessoas estão maduras para uma relação amorosa límpida; o noivo e a noiva se cansaram de permutar as velhas angústias, de sucumbir aos impasses anacrônicos. O noivo e a noiva vão à luta em defesa do amor que os uniu. Esta é uma etapa importante no crescimento espiritual de toda uma geração.
É a tendência, até ontem latente no cancioneiro popular da classe média, e agora manifesta, agora reivindicando o direito à felicidade no amor. Ao menos teoricamente, e se depender de mim efetivamente, entrou em falência a filosofia do esplendor e do desencanto formulada fatalisticamente por Vinicius de Moraes. Quem está hoje com 20 anos de idade, homem e mulher, já sabe: o amor só não é imortal, só está condenado a durar o espaço de sua finitude, se esses que se amam não estiverem dispostos a fazê-lo perene. Agora que já se pode transar antes do casamento, e que já se pode casar e descasar e casar outra vez, não há mais razão para alguém se casar com a pessoa errada. Eu digo casamento, mas me refiro à vida em comum, de papel passado ou não. É preciso acreditar (agindo em consequência) que o amor só definha e se extingue por omissão ou covardia de um dos amantes, ou de ambos.