Poetas de perto

Muro, rua São Jerônimo, Londrina-PR, 1969. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Antônio Maria nasceu há 104 anos no Recife, num sobrado da rua da União. A mesma em que, décadas antes, Manuel Bandeira “brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas”, como escreveu no famoso poema “Evocação do Recife”. Quando Maria começou ele mesmo a quebrar vidraças, Bandeira já era moço crescido e vivia no Rio de Janeiro. Nunca se cruzaram por ali, portanto. Mas, para a sorte daquele menino sempre atento aos transeuntes, havia outro morador da rua da União ocupando o posto de poeta da vizinhança.

Todas as tardes, às cinco horas, o poeta e engenheiro Joaquim Cardozo, futuramente responsável pelos cálculos que permitiram pôr de pé diversas obras de Oscar Niemeyer em Brasília, passava à porta do sobrado do jovem Maria. O cronista recordou o périplo do andarilho em “Joaquim e sua rua”, crônica de 1957: “vinha da rua Aurora, caminhava o primeiro quarteirão da rua Formosa, virava a esquina da venda do seu Fábio, atravessava a calçada e ia para sua casa, que era a terceira depois da nossa”. Joaquim era todo “lento e longo”, como o descreveu o amigo João Cabral de Melo Neto em um poema com seu nome, e assim ia caminhando pelo Recife.

O infante Antônio Maria o conhecia apenas “de ar e de nome”, e embora não pudesse desconfiar que um poeta habitasse “aquela roupa tão lenta e tão longa”, já era capaz de lhe adivinhar “alguma coisa dentro da vida, assim como um tesouro”. Algo que os poetas carregam na vista, talvez. A lembrança do vizinho evoca também as chuvas da infância, as mesmas que irrigaram versos de Joaquim: “Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?/ Como te chamas, dize, chuva simples e leve?/ Teresa? Maria?/ Entra, invade a casa, molha o chão,/ Molha a mesa e os livros”, escreveu em “Chuva de caju”, um de seus mais celebrados poemas.

“Tua chuva, poeta Joaquim”, constatou Maria anos depois, “estiou no Recife”. As garoas de então já não eram mornas como as de antes, nem arrancavam “do chão o cheiro da terra”, nem ressoavam baladas de Chopin – pois no Recife, quando chovia morno, havia sempre uma moça para tocar Chopin ao piano, “com timidez e sensualismo”. E, às cinco, o poeta Joaquim Cardozo passava sempre “lento e longo, deixando ver através das pernas o Capibaribe de João Cabral de Melo Neto, o rio que em silêncio ‘carrega sua fecundidade pobre’”.

Paulo Mendes Campos escreveu sobre outro poeta que, também sem figurar no panteão dos maiores, deixou obra merecedora de leitores: Emílio Moura, uma das figuras centrais do grupo modernista de Belo Horizonte. Diferente de tantos de sua geração, como Cyro dos Anjos, Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade, um de seus mais próximos amigos, Emílio não debandou para o Rio de Janeiro. Ficou em Minas, onde foi professor universitário, entre outras contribuições à vida intelectual. Perfilando o amigo em versos, Drummond nos falou de sua “cegonha figura”, uma “esguia palmeira” que gostava de fazer os próprios cigarros de palha, “com ponderada, mineira, emiliana perícia”.

Em 1946, Paulo registrou uma visita do amigo ao Rio na crônica “A tristeza do poeta”. Depois de quase dez anos “vividos discretamente nas montanhas” em “rigorosa abstinência de litoral”, Emílio passou alguns dias em terras cariocas, “a bebericar um chopezinho mais exagerado”. Numa manhã de abril, ele chegou triste e faminto. O cronista o levou a um restaurante, onde pôde aplacar sua fome mas não sua tristeza. Procuraram remédio na vista arrebatadora do mar de Copacabana, mas não adiantou. Ficou ainda mais triste, e “à noite estava arrasado por completo”. Os reforços foram convocados, e Drummond, Vinicius de Moraes e mais um grupo de escribas atenderam ao chamado. Mas Emílio continuou triste, e no fim daquela madrugada todos estavam contagiados por sua melancolia.

Na noite que precedeu sua partida secreta – voltou para Minas sem avisar ninguém, “protegido pela madrugada” –, o poeta confiou ao anfitrião o motivo de sua tristeza: lamentava não ter trazido os filhos. Era um crime não dar a eles a oportunidade de ver aquele tanto de mar, tanto de areia. Preferiu ir-se embora ao remorso de contemplar sozinho uma linda praia vazia. “Os olhos de Emílio Moura postados na orla branca do mar não eram apenas o acontecimento da semana”, concluiu Paulo Mendes Campos, eram “coisa mais complexa, feita de tristeza, nostalgia e sentimentos confusos: a que o vulgo denomina poesia”.

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Nota do Editor: Aos ávidos leitores de versos, aqui vão as referências dos poemas sem nomes citados: “A Joaquim Cardozo”, de João Cabral de Melo Neto, do livro O engenheiro; “I. Paisagem do Capibaribe”, de João Cabral de Melo Neto, do livro O cão sem plumas; e “Poeta Emílio”, de Carlos Drummond de Andrade, do livro Versiprosa.