Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp. 314-316. Publicada, originalmente, em O Globo, de 27/08/1957.
No caso de Joaquim Cardozo, o que me assusta não é o dia dos seus anos, pois sempre o acreditei capaz de aniversariar com assiduidade; o que me assusta e abisma é sabê-lo fazendo 60 anos, quando o imaginava pela casa dos 45. Então, com que idade ele passeava, “lento e longo”, à porta da nossa casa na rua da União? Todas as tardes. Vinha da rua Aurora, caminhava o primeiro quarteirão da rua Formosa, virava a esquina da venda do seu Fábio, atravessava a calçada e ia para sua casa, que era a terceira depois da nossa. Tudo isso “lento e longo”, como descobriu João Cabral de Melo Neto. Eu o conhecia de ar e de nome, sabia-o irmão de Mariana e sempre lhe adivinhava alguma coisa dentro da vida, assim como um tesouro. Mas, como criança não sabe de nada com palavras (criança desconfia), via-o passar todas as tardes sem atinar para o poeta que habitava aquela roupa tão lenta e tão longa.
As pessoas da rua da União, quando se perdem no mundo, guardam lembranças para sempre. A Igreja dos Ingleses, com o quintal de sombra escura feita de tamarindeiros. Ficava na esquina de Formosa, fazendo parelha com o velho prédio d’A Tribuna, de frente para o Capibaribe, rio que mais tarde seria o “cão sem plumas” do lá citado poeta João Cabral, e seria comparado ao “ventre triste de um cão”. A venda do seu Fábio, com o seu chão cheio de cocos secos, as vassouras de piaçava penduradas no teto e aqueles vidros grandes repletos de peixes e charutos de chocolate, razão por que pedíamos tantos duzentos réis às pessoas grandes. O casario de defronte, irregular, com algumas casas mais novas que as do nosso lado. Ali moravam dona Ester Russa, o velho Zé Lacerda e um homem muito feio, embora juiz de Direito, que tinha uma dezena de filhos e sobrinhos, todos feios e nascidos em Petrolina. Esses meninos sempre quiseram me convencer de que homem que é homem só devia usar o cinto muito abaixo do umbigo, deixando a barriga dobrar um pouco sobre a fivela. Mais adiante, os fundos do Clube Internacional, a casa de um Sousa Leão e os fundos da casa de Oscar Berardo, que tinha portas ainda para a avenida Riachuelo e para a rua da Aurora. Do nosso lado, as três casas grandes eram a de Dona Laura (outra Sousa Leão), a da família Baltar e a nossa, a maior de todas, fazendo esquina com a rua Formosa. No meio, o casario amarelado, de portas e janelas verdes, com os seus sótãos tão bons para dormir na fresca da noite, seus pequenos quintais cheirando a galinha e suas decorrências. Eram dessas as casas de Joaquim Cardozo e Plínio Bombeiro. Mas a rua da União continuava depois da avenida Riachuelo, depois da avenida Princesa Isabel, indo acabar quase em Santo Amaro, além da câmara dos deputados e do ginásio Pernambuco. Entre a Riachuelo e a Princesa Isabel morava Agamenon Magalhães, ou melhor, morava sua tia-sogra, a quem chamávamos de Tia Loló, com vontade de que ela fosse tia nossa, tanto quanto era de Antonieta e Agamenon. Quase parede-meia, a casa de Glauce Pinto, noiva de todos os meninos de oito e nove anos, aí por volta de 1930. Que mulher bonita! Na minha casa da Riachuelo (esquina de Saudade), ficávamos na janela para vê-la voltar da retreta, com o seu andar autoritário de pessoa bonita. Quando a empregada nos queria jogar na cama, minha mãe, que sempre entendia os meus mistérios, intercedia: “Deixe primeiro Glauce Pinto passar”. E dormíamos com o coração opresso, com esse amor feito de silêncio e renúncia, muito frequente nas crianças antigas. Ah, Recife, como você me salva de escrever perigosamente! É por isso que eu recorro tanto às suas lembranças. Mas o assunto é o poeta Joaquim Cardozo, a quem peço perdão por não o ter esquecido. Nem sabe quem eu sou. Tua chuva inconstante e breve, poeta, tua chuva de caju, tua chuva que molhava o chão, vinha dos sítios aromáticos, cheirando cajus e mangabas. Tua chuva, poeta Joaquim, a que tu gostarias de chamar de Teresa ou Maria, espírito do ar noturno dos mangues, já estiou no Recife. Fui lá, procurei-a. As chuvas do Recife são hoje em dia iguais às de São Paulo e Florianópolis. Já não é morna como as antigas. Já não arranca do chão o cheiro da terra. Já não se parece com algumas baladas de Chopin. No Recife, de tarde, quando chovia morno, em todas as casas onde havia piano uma moça tocava Chopin, com timidez e sensualismo. Às cinco, o poeta Cardozo apontava na esquina da rua Aurora e lá se vinha longo e lento, lento e longo, deixando ver através das pernas o Capibaribe de João Cabral de Melo Neto, o rio que em “silêncio carrega a fecundidade pobre”.