Céu de inverno (vento frio), Chácara Arara, Londrina-PR, 1948. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Lá em 1893, quando as estações do ano tinham mais cara própria, Machado de Assis se queixou numa crônica que o inverno andava mais longo e cruel que de costume. “Quem acorda cedo, quando a Aurora, como na Antiguidade, abre as portas do céu com os seus dedos cor-de-rosa, entenderá bem o que digo”, escreveu o cronista de hábitos matutinos: “Eu levanto-me com ela, aspiro o ar da manhã, e não me queixo; eu amo o frio”. O escritor, aliás, nasceu num 21 de junho, há 185 invernos, justo no dia em que caem as últimas folhas do outono e o vento gelado vem irritar nossas narinas.
Leitor atento das notícias da Europa, Machado achou curioso que os europeus andassem penando num calorão intenso, a ponto de estarem sempre “com o chapéu na mão, bufando, ingerindo gelados”, ao passo que os cariocas sofriam com um frio “mais prolongado e intenso”. “O mundo está para ver alguma coisa mais grave do que pensas”, palpitou diante das intempéries climáticas, mas com a ressalva de que não entendia nada de climatologia. Nesse ritmo, quem sabe dali a uns anos os parisienses e londrinos não tivessem de dormir “em redes, na calçada, ou com as portas abertas”, arfando num bafo quente, e os moradores do Rio de Janeiro patinariam na neve pela rua do Ouvidor. Impossível não desejarmos, aqui torrados pelo aquecimento global, que o Bruxo do Cosme Velho tivesse acertado ao menos um pouquinho em sua desconfiança.
No século seguinte, em 1947, Rachel de Queiroz queixou-se justo do oposto: “Um desgosto de que nunca me consolarei será ir para a cova sem jamais haver conhecido frio de verdade, frio com neve, fogo aceso, agasalho até o nariz, luvas de lã”. A cronista era do Ceará, onde temperatura baixa não se cria, e seus conterrâneos consideravam a friaca da Europa “um requinte, quase um prazer de grã-finos”. Talvez porque só viajando, gastando dinheiro, é que se podia prová-la. Quando alguém embarcava para o Rio, imagine, era comum ouvir dos conhecidos: “Vai gozar o frio, hein?”.
Às vezes, acontecia de certas moças passarem uma temporada no inverno carioca e voltarem munidas de uma “indumentária hibernal”. Chegava a ser comovente a obstinação com que as ditas elegantes insistiam em desfilar, em plena Fortaleza, com as “luvas de pelica, de cano comprido, com que brilharam na Cinelândia”. Mas é impossível “conservar calçada uma luva de suede” com o suor escorrendo pelo pulso, e assim as peças importadas de caxemira iam direto para os gavetões, pegar cheiro de naftalina.
Como diz o ditado, Deus dá O frio conforme a roupa, a roupa conforme o frio, ou mais ou menos isso, e no calor cearense, de sol árduo mas ventilação ininterrupta, poderia perfeitamente um homem nascer e viver 80 anos “sem jamais sentir a necessidade de um trapo em cima do corpo” – não fosse, é claro, o “recato cristão” ou “o desejo de ornato”. No sertão, “criança de gente pobre só vai conhecer roupa quando a decência reclama”. Ao nascer, geralmente o inocente herda “algum barrete de meia ou duas camisas de pagão” do irmão mais velho, mais “um cueiro bordado ou aberto de renda”. E assim segue a vida nu, até que uma das comadres alerte a mãe – “um meninão tão grande, bom de usar roupa”.
Anos mais tarde, em 1952, foi a vez de Rubem Braga estranhar o clima. Atravessando uma noite quente, os ventos do sul amontoaram nuvens baixas que despejaram uma chuva forte sobre o Rio de Janeiro, com aquela pinta de chuva de verão. Em seguida, “o temporal matutino veio com um vento quase frio, e às onze horas da manhã o ar estava escuro e ao mesmo tempo leve como de madrugada”. O inverno estava chegando. E a rua do cronista, que já andava tristonha por ter as árvores podadas, despertou cabisbaixa – “o asfalto molhado tinha um reflexo tão triste, uma luz pálida de olhos de pessoa doente”.
O dia correu escuro, como costumam ser os últimos do outono, “esses dias em que a cidade grande assume um ar egoísta, apressado, ao mesmo tempo brutal e cheio de tédio”. Podemos amar o inverno, ponderou o cronista, “nas montanhas cobertas de neve e de sol e nas noites urbanas, quando as mulheres esplendem entre os grandes casacos macios, no meio das luzes”. Mas a rua diurna “é triste e feroz”, “e o vento gelado esbofeteia o transeunte”.
Aquela manhã excêntrica de prenúncio invernal apertou o coração de Braga, saudoso de luz e calor, de “sair com um calção de banho e andar na praia, ao sol”. Mas, como num milagre, um fiapo de sol conseguiu vencer as nuvens, e mesmo “tão claro e fino”, fez a cidade esplandecer no ar limpo, “viva como risada de criança”. Por aquele instante, o cronista surpreendeu nas pessoas um olhar novo, quase feliz, “como se tivéssemos saído afinal da escuridão de um torpe, longo inverno”. A vontade era de tomar as ruas “e a todo ser humano que passasse, conhecido ou desconhecido, dizer, com uma leve emoção – bom dia!”.