Um desgosto de que nunca me consolarei será ir para a cova sem jamais haver conhecido frio de verdade, frio com neve, fogo aceso, agasalho até o nariz, luvas de lã. O pouco que me dá a conhecer a respeito de frio o inverno carioca, faz-me ter o pressentimento de que hei de adorar um rude inverno europeu ou norte-americano. Algum cearense que me leia talvez encolha os ombros com desdém e me chame de esnobe. Pois que o frio, na nossa terra ― não sei por quê é considerado um requinte, quase um prazer de grã-finos. Decerto é porque só viajando, gastando dinheiro, podemos nós sentir frio; e também pela ideia de terra civilizada que o frio nos sugere: lareira, capa de peles, gravura de Natal com neve cobrindo castelos e igrejas. Quando alguém embarca para o Rio, é comum ouvir dos conhecidos: “Vai gozar o frio, hein?”. E é comovente a obstinação com que certas elegantes, depois de uma estadia de alguns meses na capital, insistem em sair de bailes, em plena Fortaleza, com a sua raposa prateada ― ou fazem compras metidas no costume de caxemira, ou pelo menos insistem nas luvas de pelica, de cano comprido, com que brilharam na Cinelândia, no saudoso esplendor carioca. Porém até as mais heróicas acabam desistindo ― e a indumentária hibernal vai para os gavetões e a naftalina. Não é fácil conservar calçada uma luva de suede, sentindo o suor escorrer pelo pulso.
Poucos lugares do mundo possuem uma estabilidade de clima igual à do Ceará. Se não fora o problema do recato cristão, ou o desejo de ornato, poderia um homem na minha terra nascer, viver oitenta anos, sem jamais sentir a necessidade de um trapo em cima do corpo. E não que o calor seja tremendo: o sol é quente, mas a ventilação é ininterrupta — todo o Ceará é como uma grande praia varrida incessantemente pelo vento do mar. E, salvo a região das serras, (onde o clima é realmente molhado e frio) a temperatura mantém-se a mesma, o ano todo, suave, seca, com uma aragem agradável soprando constantemente (o doce “aracati” da hora do crepúsculo, por exemplo).
No sertão, criança de gente pobre só vai conhecer roupa quando a decência reclama, pedindo que se lhe tape a nudez. Faz-se uma exceção para a camisa de batizado, presente da madrinha. Ao nascer, herda o inocente algum barrete de meia ou duas camisas de pagão que já foram do irmão mais velho (o pouco uso da roupa de recém-nascido fá-la passar quase de geração a geração); um cueiro bordado ou aberto de renda, ― se a mãe não é muito pobre ou muito relaxada. Mal o pequeno se senta ― é costume sentá-lo numa espécie de cova, de meio palmo de fundo por palmo e meio de comprimento, aberta no chão de terra batida ― já vive nu. Nu aprende a andar, nu como um índio vai riscando o corpo de arranhões no marmeleiral próximo à casa; nu ainda, já toma conta da criação, já dá de comer ao porco, já pastoreia os bezerros, se o pai labuta com gado, dá adjutório na roça. Nu, de dedo na boca, vai ver o trem passar, na beira da linha. Nu, sem colcha nem lençol, dorme na sua tipóia de pano ralo, armada precariamente em dois enxaméis, na parede de taipa.
Quando a grita das comadres começa a alertar a mãe ― “um meninão tão grande, bom de usar roupa” ― é o nosso herói munido de uma camisola; aliás, o uso da camisola vai caindo e hoje é mais comum começar a vestir os meninos com uma calcinha de suspensórios de pano, sem blusa nem camisa, é claro — que isso já são luxos de homem feito. Porém, mesmo entre os homens, o costume de usar roupa ainda representa, na sua essência, mais que um imperativo do corpo ― um preceito de moral e um refinamento de elegância.
É muito comum mandar o fazendeiro chamar um dos seus cabras, em dia de domingo, e aparecer um dos filhos do convocado, dando esta explicação que ninguém estranha:
― Papai manda dizer ao senhor que não pode vim não porque tá nu dentro de casa; a mãe foi pro açude bater a roupa dele....
Aquele homem tem cinco, seis, dez filhos, tem galinha no terreiro, tem o seu pedaço de roçado, tem a sua espingarda para caçar, tem às vezes o seu porco, o seu bode ― e só possui uma roupa!