Na mesa ao lado

Grupo de pessoas não identificadas sentadas à mesa de restaurante,  local, data e fotógrafo não identificados. Arquivo Paulo Mendes Campos/ Acervo Instituto Moreira Salles.

A vida cotidiana é o espaço preferido da crônica, disse o professor Davi Arrigucci Jr. em um belo ensaio sobre o gênero. Faz parte do ofício do cronista estar atento às coisas da vida, sobretudo as pequenas. Ele está autorizado a ser um abelhudo, mais do que apenas um observador. Tem licença poética para bisbilhotar. Tudo vale para descobrir os assuntos dispersos por aí, que muitas vezes estão dando sopa justo na mesa ao lado, à disposição de ouvidos atentos.

Foi o que retratou Carlos Drummond de Andrade em “Cortesia da casa”, crônica sobre um casal que decide comer fora. Com antecedência, a esposa tinha avisado que domingo não haveria almoço. O marido prometeu levá-la para algum lugar. Mas chegou o domingo e a preguiça se impôs, vestida de pijama e com vários jornais para oferecer. Ele perguntou se a esposa não topava um sanduíche improvisado. “Você me prometeu”, disse ela. E nem toda a morosidade dominical do mundo poderia desfazer aquela promessa. Os dois partiram, então, à procura de restaurante.

Assim que se sentaram no local escolhido, ele, “com complexo de velhice”, avaliava os clientes das outras mesas. Descontando um ou outro exemplar jovem, só dava “gente de 50 para cima”. Sentiu-se em casa, confortável. Ela também averiguava a vizinhança, palpitando sobre o estado civil das senhoras. Entre cochichos e comentários, os dois notaram que muita gente estava bebendo champanhe e fazendo brindes discretos. Não demorou para a “orquestra romântica dos restaurantes da velha guarda” atacar “Parabéns para você”, seguido de “Cidade maravilhosa”.

O que comemoravam? Seria o aniversário de alguém? Casamento? Fosse o que fosse, o marido quis participar da festa. E antes que pudesse pedir algo, o garçom se antecipou, adivinhando seu desejo e servindo taças ao casal: “A casa pede licença para oferecer. Em comemoração ao aniversário da firma”. Os dois, entreolhando-se “feito menino que ganhou bala”, brindaram à felicidade da firma. E o marido, em segredo, à determinação da esposa em não trocar o almoço por um sanduíche caseiro.

Maria Julieta Drummond de Andrade, em “No restaurante”, escreve sobre uma moça que costumava parar em um estabelecimento na volta do trabalho e cultivar “com prazer certos hábitos de solidão”, diante de um prato de bife com salada. Enquanto aguardava o pedido, observou um homem de óculos sentado no canto, folheando o jornal da tarde e tomando um chope. Ela “intuiu que uma vaga cumplicidade a ligava àquele companheiro desconhecido, que também jantava sozinho e parecia em paz consigo mesmo”.

Quando o bife chegou, viu na mesa da direita “duas senhoras gordas de meia-idade”, entregues a uma imensa e gordurosa pizza, que desviaram o olhar ao cruzar com o seu. Vai ver acharam estranho uma mulher jantando sozinha, com ar satisfeito. Mais adiante, na mesa das sexagenárias – viúvas, talvez, “vestidas com capricho e penteadas com spray” –, provavelmente sequer se deram conta de sua presença, ocupadas que estavam falando “todas ao mesmo tempo” e achando “tanta graça umas nas outras”.

Na outra ponta do salão, a filhinha de cinco anos dispensava ajuda para cortar o próprio frango, e ao espalhar “fiapos de galinha pela toalha e pelo chão”, provocava discordância entre os pais. A mãe se impacientava, e o pai quis conciliar a situação, mas não adiantou: “a menina acabou jogando os talheres sobre o prato e se negou a continuar comendo”. Ao lado, um casal apaixonado deixava a comida esfriar, “absortos na mútua contemplação”, “abandonados um no outro”. Os braços se tocavam e o rapaz alisava um cacho de cabelo da moça “como se estivesse compondo escultura delicada”.

A moça solitária, que sempre parava no restaurante depois do trabalho, percebeu que ali, entre as mesas, se formava o ciclo completo da vida – “o antes e o depois de cada um, o que a esperava, o que já tivera”. De repente, “sentiu ternura e piedade por todos, inclusive por si mesma”. E então pagou a conta e saiu.