A entrada de Maria Julieta Drummond de Andrade no mundo das crônicas marca sua última década de vida. De 1977 a 1987, os leitores puderam acompanhar textos delicados e bem-humorados, sempre aos sábados, no “Segundo Caderno” do jornal O Globo.
Embora a escrita literária tenha se tornado mais frequente apenas na maturidade, Maria Julieta estreou cedo, aos 17 anos, com o lançamento da novela A busca, que causou impacto na crítica da época.
Mas durou pouco o début público. A futura cronista logo dirigiu sua vida profissional para longe dos holofotes editoriais, fincando-se na Argentina por quase três décadas.
Ali, Maria Julieta se tornaria uma das mais importantes figuras da cultura, atuando de forma quase simultânea em três frentes: docência na Universidade de Buenos Aires (UBA), coordenação do Centro de Estudos Brasileiros e tradução de obras brasileiras para o castelhano e de títulos espanhóis para o português.
Feitas de forma sólida, duradoura e criativa, essas atividades em favor da aproximação cultural entre Brasil e Argentina resultaram em dois prêmios: foi reconhecida pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) na categoria Divulgação da Literatura Brasileira e pela Universidade de Buenos Aires como Personalidade do Ano (1980).
Tal trajetória – permeada pela relação com artistas, escritores e músicos dos dois países – convive textualmente com o que há de mais cotidiano, doméstico e simples. Ainda dará cor e sabor às suas crônicas a triangulação de regiões distintas e distantes nas quais viveu, como Belo Horizonte, Buenos Aires e Rio de Janeiro. Seu contexto familiar também não deixa de ressoar na escrita: filha de Carlos Drummond de Andrade, a relação entre os dois é o ponto de partida para que ela, Maria Julieta, passe a assumir semanalmente a máquina de escrever.
Para além dos grandes eventos e feitos de uma vida, é neste gênero que Maria Julieta registra, com delicadeza, o que mais ama: animais, amigos, alcachofras e abacates.
Nasce Maria Julieta Drummond de Andrade na sexta-feira, 4 de março, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Filha única de Carlos Drummond de Andrade e Dolores Dutra de Morais, seu nome é uma homenagem às avós Maria das Dores, por parte de mãe, e Julieta Augusta, por parte de pai.
1934
Aos seis anos de idade, muda-se para a rua Joaquim Nabuco, nº 81, passando infância e adolescência entre os bairros de Ipanema e Copacabana, onde costumava andar de bicicleta na Praça do Lido.
É matriculada no tradicional Colégio Sion, no Cosme Velho, frequentado por jovens da alta sociedade carioca. É nesse contexto que se aproxima de Maria Clara Machado, fundadora do Teatro Tablado, de quem será amiga a vida inteira.
Sua formação literária tem como base as “histórias de Monteiro Lobato, as do Tesouro da Juventude (cujos 18 volumes recebi dele [do pai] quando tinha dois anos) e finalmente as de uma coleção de contos universais (...). Quase tudo que conheço em matéria de literatura vem principalmente daí”.
1939
Três anos depois de Carlos Drummond, seu pai, ter sido retratado por Cândido Portinari, é a vez de Maria Julieta posar para o pintor.
1942
Integra o Movimento Bandeirante, de educação não formal, participando de congressos e conhecendo cidades junto ao grupo de jovens escoteiras católicas.
1945
Em 17 de agosto, Drummond registra o processo de escrita do primeiro livro de Maria Julieta, A busca, que será publicado dois anos depois: “Minha filha tranca-se no quarto, escrevendo mais um capítulo do: romance? novela? que já tem 40 páginas datilografadas. (...) Fico possuído de admiração pelo trabalho continuado, que nunca fui capaz de conseguir. Acho que jamais escrevi mais de dez páginas sobre o mesmo tema”. (O observador no escritório)
Nesse mesmo ano, Maria Julieta traduz HumulusLu Muet, de Jean Anouilh e Jean Aurenche. A peça teatral será publicada décadas à frente, em 1982, nos Cadernos de Teatro, nº 92, e funcionará para Julieta como a madeleine de Proust: “Pequena joia de humor, em um ato e quatro cenas rapidíssimas. (...) Naquele tempo só brincávamos de teatro”.
1946
Cursa graduação em Letras Neolatinas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e conclui a escrita da novela A busca. Rachel de Queiroz é uma das primeiras leitoras do original e recomenda a publicação à editora José Olympio: “Ela [Maria Julieta] tinha talento e um texto enxuto”.
Com prefácio de Aníbal Machado, A busca é lançada no final do ano e recebe críticas positivas de Álvaro Lins, Augusto Meyer, Lêdo Ivo e Lúcia Miguel Pereira, que destaca as “qualidades de lucidez (...), lucidez de menina e moça que não quer iludir e, às vezes, um tanto ingenuamente, se inebria de hipercrítica”.
Paulo Mendes Campos também comenta no Diário Carioca: “A juventude que jorra das páginas de A busca inunda a mesa em que o crítico escreve, sobe aos olhos do crítico, arranca-lhe os óculos e afoga seus austeros pensamentos”. (“A busca”)
1947
Nesse momento, pai e filha dividem o mesmo patrão: o Correio da Manhã. Enquanto Drummond escreve crônicas na seção “Imagens”, Maria Julieta traduz contos do francês e do inglês.
Aos 19 anos, sua vida social é ocupada por eventos literários e sessões de cinema geralmente em companhia do Drummond. Escreve ele: “Com Maria Julieta e Paulo Mendes Campos, agora nosso vizinho, vou à Academia assistir à entrega do prêmio de romance a Cyro dos Anjos (...). No Cinema Rian, “Ivã, o Terrível”, de Eisenstein. Concordo com minha filha: não voltaríamos ao cinema se todos os filmes fossem assim grandiosos”.
1949
Em festa organizada por Ivete Vargas, jornalista e deputada federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, Maria Julieta conhece o advogado argentino Manuel Graña Etcheverry. Manolo, apelido pelo qual ficaria conhecido, havia sido relator da lei que instituiu o voto feminino na Argentina. Depois de um mês de namoro, Manuel e Julieta casam-se, em 18 de outubro.
Desiste da bolsa de estudos na Universidade Sorbonne e transfere-se para a Argentina, onde passará as próximas três décadas. Com essa mudança, amplia-se, pela primeira vez, a distância entre Drummond e Maria Julieta. Fora de seu país natal, a correspondência entre os dois se intensificará com notícias sobre a saúde, poemas, presentes e livros: “Os cartões de Natal chegaram. Outros pacotes de livros estão seguindo: o Webster, o Petit Prince de Saint-Exupéry, Dámaso Alonso, Teatro de Sartre, Grand Meaulnes, Kafka, antologia de Bandeira etc.”.
Instalada no bairro do Retiro, em Buenos Aires, a casa de Maria Julieta e Manolo abrigaria escritores, cantores e intelectuais que estivessem pela terra portenha, ficando conhecida como uma extensão da Embaixada Brasileira. Passaram por lá Fernando Sabino e Vinicius de Moraes: “Quase nunca Vinicius chegava sozinho e, se o fazia, era sempre em estado de amor. Passava horas descrevendo a escolhida, com uma paixão tão envolvente, que todos (...) achávamos a coisa mais normal dos mundos os infindáveis telefonemas internacionais (...)”. (Maria Julieta Drummond de Andrade, coleção Melhores Crônicas, São Paulo, Global, 2012, p. 50).
1950
Começa a atuar como professora de Literatura Portuguesa e Brasileira na Faculdade de Filosofia e Letras na Universidade de Buenos Aires.
Nasce seu primeiro filho, Carlos Manuel, em 11 de novembro.
1953
Nasce seu segundo filho, Luis Maurício, em 16 de agosto.
1960
Nasce seu terceiro filho, Pedro Augusto, em 30 de janeiro.
1969
Traduz para o português a Nova antologia pessoal, de Jorge Luis Borges, organizada pelo próprio autor. Esta publicação reuniria alguns dos mais célebres ensaios, poemas e prosas de ficção que Borges vinha publicando desde os anos 1930.
Lançada no Brasil pela editora Sabiá, a tradução marca o início de uma relação entre Maria Julieta e Borges que se estenderá até a década de 1980, com entrevistas, visitas à casa do autor e duas conferências no Centro de Estudos Brasileiros (CEB), do qual Julieta será diretora.
“A sala é escura, despojada, quase ascética (...). Impecavelmente limpo, elegante, barbeado com meticulosidade, perfumado, veste um terno cinzento de lã grossa, gravata, camisa bem passada, sapatos pretos de cordão.” (Maria Julieta Drummond de Andrade, coleção Melhores Crônicas, São Paulo, Global, 2012, p.38).
1970
Depois de 22 anos de casamento e três filhos, separa-se de Manolo.
1976
Passa a coordenar o Centro de Estudos Brasileiros (CEB), na rua Esmeralda, nº 965, em Buenos Aires. Ali dá continuidade ao trabalho de difusão da língua e da cultura brasileira desenvolvido desde 1954 com o apoio da Embaixada do Brasil. Organiza exposições, shows, cursos de música, aulas de português para estrangeiros e de espanhol para brasileiros, além de palestras – como a de Jorge Luis Borges, em 21 de novembro de 1980, sobre poesia.
Para Drummond, o trabalho de Julieta era mais importante que o seu, porque ela era responsável por difundir a cultura brasileira no exterior.
1977
A edição de 2 de novembro da revista Veja traz um dossiê dedicado aos 75 anos de Carlos Drummond de Andrade. Convidada pela revista, Maria Julieta publica “Meu pai”, texto que tem grande repercussão e será a porta de entrada da então professora, tradutora e coordenadora no mundo da crônica.
Todo sábado, no “Segundo Caderno” do jornal O Globo, o público pode acompanhar seus textos, que versavam sobre memórias, angústias, experiências em Buenos Aires, Rio de Janeiro e Minas Gerais, além do registro delicado de plantas e animais. A publicação das crônicas só será interrompida semanas antes de sua morte.
1979
Em parceria com a editora Botella al Mar, traduz e organiza o lançamento de Teatro infantil, de Maria Clara Machado, na coleção Iracema. Ali estão incluídos alguns dos textos mais expressivos da teatróloga, como O cavalinho azul e O rapto das cebolinhas.
1980
Em 5 de novembro, publica Um buquê de alcachofras, antologia das crônicas escritas nos últimos três anos para O Globo, que trata de temas como animais, vida profissional e afetiva.
O lançamento é acompanhado por uma sessão de autógrafos tripla: na mesma ocasião, Carlos Drummond de Andrade autografa A paixão medida, Gilberto Freyre assina exemplares da 20ª edição de Casa-grande & senzala.
Recebe homenagem de Personalidade do Ano, pela Universidade de Buenos Aires, e o prêmio de melhor divulgação da literatura brasileira na Argentina, pela Associação Paulista de Críticos da Arte (APCA).
1981
Publica a segunda edição da novela A busca. Até 1987, ainda se seguirão duas novas tiragens.
1982
Publica O valor da vida, que reúne crônicas e contos já publicados. O livro é dedicado aos seus “três rapazes, netos de outro rapaz de 80 anos”.
1983
Transfere-se definitivamente para o Rio de Janeiro.
1984
Em 2 de janeiro, Maria Julieta grava a entrevista antológica com o pai, na sala de casa: “Você é uma repórter e eu sou um assunto”.
Toma posse como membro do Conselho Federal de Cultura, que tinha como atribuição formular a política nacional, promover campanhas nacionais de cultura, entre outras funções. O CFC era constituído por 24 pessoas escolhidas "dentre personalidades eminentes da cultura brasileira e de reconhecida idoneidade" e, junto com Maria Julieta, estavam, entre outros, Abgar Renault, Francisco Iglésias e Plínio Doyle.
Casa-se com Octávio Mello Alvarenga, advogado e historiador também mineiro, seu amigo de longa data. O amor pelos animais – tema caro à Maria Julieta – sela a reaproximação entre os dois, que aconteceu “por causa dos passarinhos que eu crio soltos em meu gabinete”, nas palavras de Alvarenga.
1985
Traduz a peça Emily Dickinson, de William Luce.
Sem sua autorização, Drummond publica Diário de uma garota, livro que traz o “registro amoroso e miúdo dos pequenos nadas que preencheram os dias de uma adolescente em férias, no verão antigo de 1941 para 1942”. À época, Maria Julieta, com 13 anos, faz um “retrato que escapa da moldura, ganha movimentos, cheiros, risos e vida”, de acordo com análise de Marisa Lajolo.
1986
Publica seu quinto livro, Loló e o computador. Voltado para o público infantil, trata da relação de uma menina diagnosticada com tristeza que tem dois animais de estimação (uma coruja e uma gata) e dois amigos imaginários: um computador e uma secretária eletrônica rouca.
Nesse mesmo ano, publica Gatos e pombos, reunião de crônicas sobre animais – paixão de toda uma vida: “Este livro se destina aos que amam os animais e se veem forçados, na aridez das cidades, a limitar esse amor aos poucos bichos que os rodeiam”.
1987
Lutando contra um câncer ósseo, Maria Julieta morre no dia 5 de agosto, depois de dois meses internada: “os leitores perderam uma excelente cronista, o Brasil perdeu uma grande intelectual e eu perdi uma grande amiga”, segundo Fernando Sabino.
“Assim terminou a vida da pessoa que mais amei neste mundo”, escreve Carlos Drummond de Andrade em seu diário.
*Elizama Almeida é doutoranda do Programa Materialidades da Literatura/ Universidade de Coimbra, pesquisadora da lacunae trabalha no Instituto Moreira Salles.