Em memória de Hélio Pellegrino

Hélio Pellegrino, década de 1970. Fotógrafo não identificado. Arquivo Otto Lara Resende/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Nós é que não fecharíamos as cortinas de 2024 sem antes prestar homenagem ao centenário de Hélio Pellegrino, um artista de sensibilidade muito particular cuja obra ainda está por ser devidamente organizada. Poeta, psicanalista e pensador inconformado, Hélio não escreveu crônicas, mas é personagem de várias. Escolhemos algumas para destacar sua presença na vida intelectual brasileira.

Do mineiríssimo grupo que compôs com Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Fernando Sabino, os “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, Hélio foi o que menos se dedicou à vocação de escritor. Com exceção de uma plaquete publicada em tiragem mínima, nada de sua lavra saiu em livro. No fim da vida, chegou a deixar organizado A burrice do demônio, um volume de artigos que escreveu para a imprensa, mas não encarou as centenas de poemas dispersos que, mais tarde, foram dar em Minérios domados, antologia garimpada por Humberto Werneck. Além disso, uma amostra de sua muito fina prosa pode ser lida em cartas no Correio IMS.

Clarice Lispector o considerava um dos homens mais completos que conhecera, por causa do “amor que distribui quase sem sentir, amor no sentido de amizade e tolerância”, escreveu na crônica “Um homem chamado Hélio Pellegrino”. Esse traço amoroso, no entanto, não o transformava em um bobo inocente – Hélio “é firme como ele só, é capaz de entrar em violentas discussões e agregar-se ao que for importante”.

Ao lado de Hélio, analista de profissão, Clarice se sentia valorizada como pessoa. Sentia-se alegre “porque ele é capaz de alegria”; profunda “porque ele é um ser humano profundo”; e à vontade para fazer muitas perguntas, mesmo as infantis, porque “com ele se aprende muito”. Qualquer assunto dava pé para uma toada filosófica – basta ler, na crônica de Clarice, sua resposta sobre o valor da vida para perceber uma irrefreável disposição em escarafunchar as coisas atrás de sentidos. Para Hélio, diz Clarice, o “mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma, cálida e imensa mutualidade do amor”.

Hélio morreu numa madrugada de março de 1988, por complicações cardíacas. O amigo Rubem Braga foi velá-lo na capela Real Grandeza, em Botafogo, apesar de sua aversão “por aquele depósito comercial provisório de defuntos”. Tonto de calor e de ver “caras conhecidas que ia cumprimentando sem saber direito quem eram”, o cronista viu médicos, jornalistas, escritores, políticos, artistas e uma desmedida quantidade de moças entristecidas. “Nunca vi tanta mulher chorando”, escreveu. Em enterros, elas não são fáceis de reconhecer – “ou trazem óculos negros enormes ou têm a cara sem pintura ou com a pintura devastada pelas lágrimas”. Mais de uma foi abraçar e beijar Braga na cara, “como pedindo proteção”. Sobre aquele gesto misterioso que o intrigou, e sobre tantas outras questões de amor e morte, ele gostaria de conversar com “uma pessoa ao mesmo tempo imaginosa e lúcida”, mas essa pessoa se chamava Hélio Pellegrino e estava agora “metida em um caixão”.

Poucos anos depois, Hélio virou nome de avenida nos arredores do Parque Ibirapuera, em São Paulo, por iniciativa da prefeitura de Luiza Erundina. Era mais um chegado de Otto a virar referência geográfica, como contou em “Ilhas ou avenidas”. Apesar de considerar justa a homenagem ao “amigo fundamental”, o cronista não pôde deixar de lamentar sua ausência: “Desculpem, mas eu gostava mais do Hélio quando não era avenida…”.