Fonte: Todas as crônicas, Rocco, 2018, pp. 440-443. Publicada, originalmente, no Jornal do Brasil, de 4/09/1971.
Considero Hélio Pellegrino um dos homens mais completos que conheço. Qual o seu traço marcante? Um amor que ele distribui quase sem sentir, amor no sentido de amizade e tolerância. Mas nem por isso ele é um bonzinho: pelo contrário, é firme como ele só, é capaz de entrar em violentas discussões e agregar-se ao que for importante. Com todo o seu temperamento, é no entanto capaz de julgar uma situação com grande isenção de espírito ou fazer uma crítica literária de muita agudez. Como poeta é ótimo. E, segundo me disseram, também como psicanalista. Mas felizmente não se trata de uma pessoa perfeita: é mais uma pessoa se aperfeiçoando dia a dia.
É bom estar com Hélio: a gente se sente compreendida, sente-se alegre porque ele é capaz de alegria, sente-se profundo porque ele é um ser humano profundo; rir com ele é ótimo, e chorar perto dele também deve dar certo, imagino. Quando estou com Hélio Pellegrino sinto-me valorizada como pessoa. E faço-lhe muitas perguntas, algumas infantis, mas acontece que com ele se aprende muito. Eu, pelos menos, aprendi.
– Hélio, é bom viver, não é? é pelo menos a impressão que você me dá – disse-lhe eu um dia desses.
– Viver – essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos alguma coisa de extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder acumula ferrugem nos olhos e se torna cego, cego de rancor. Quando a gente chega a aceitar com verdadeira e profunda humildade as regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom: se torna fascinante. Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, movimento sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está encravada no tempo. É preciso garimpá-la com incessante coragem para que o gosto do ouro possa fulgir em nossos lábios. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa vida tem sentido.
Uma vez perguntei-lhe por que escrevia esporadicamente e não assumia de uma vez por todas o seu papel de escritor e criador. Respondeu que escrevia menos esporadicamente do que publicava; que escrever e criar constituíam para ele uma experiência radical de nascimento. Gostaria de permanecer para sempre fiel a um pequeno trecho do Diário íntimo de Kafka, fazendo dele a sua fórmula de vida: “Há dois pecados humanos capitais, dos quais todos os outros decorrem: a impaciência e a preguiça. Por causa de sua impaciência, foi o homem expulso do Paraíso. Por causa de sua preguiça, não retornou a ele. Talvez não exista senão um pecado capital, a impaciência. Por causa da impaciência foi o homem expulso, por causa dela não consegue volta. Tenhamos paciência – uma longa, interminável paciência – e tudo nos será dado por acréscimo.”
Eu lhe disse que meu sonho impossível seria o de ter várias vidas: numa eu seria só mãe, em outra eu só escreveria, em outra eu só amava. Respondeu-me que era um homem de muitos amores, isto é, de muitos interesses, e que para tão longos amores tão curta era a vida: não havia ninguém que conseguisse, no tempo de uma vida, esgotar todas as suas possibilidades. Que, se tivesse várias vidas, gostaria de ser: 1º) filósofo profissional; 2º) romancista; 3º) marido de Clarice Lispector, a quem se dedicaria com veludosa e insone dedicação...; 4º) chofer de caminhão; 5º) morador em Resende, apaixonado por uma moça triste, debruçada à janela de uma casa, saída de um quadro de Volpi; 6º) seresteiro, poeta, cantor, com música de Chico Buarque.
Para Hélio a coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro, na calma, cálida e imensa mutualidade do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo. E amor é surpresa, susto esplêndido – descoberta do mundo. Amor é dom, demasia, presente. “Dou-me ao Outro e, aberto à sua alteridade, por mediação dele, recebo o dom de mim, a graça de existir, por ter-me dado.”
Perguntei uma vez ao Hélio: você, que é analista e me conhece, diga – sem nenhum elogio – quem sou eu, já que você me disse quem é você, pois preciso conhecer o homem e a mulher. Respondeu-me: você é uma dramática vocação de integridade e totalidade. Você busca, apaixonadamente, o seu self – centro nuclear de confluência e de irradiação de força – e esta tarefa a consome e faz sofrer. Você procura casar, dentro de você, luz e sombra, dia e noite, Sol e Lua. Quando o conseguir – e este trabalho é de uma vida – descobrirá em você o masculino e o feminino, o côncavo e o convexo, o verso e o anverso, o tempo e a eternidade, o finito e a infinitude, o yang e o yin, na harmonia do tao – totalidade. Você então conhecerá homem e mulher – eu e você; nós.