Abstrato, rua São Jerônimo, Londrina-PR, 1969. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Quando Maria Julieta Drummond de Andrade chegou a Buenos Aires em 1949, onde viveu por quase três décadas com a família e lecionou na universidade, encontrou “uma cidade onde viver era delicioso”. Seu apartamento no bairro do Retiro era novo, com um conforto que considerou “californiano”: tinha campainha automática – uma grande novidade tecnológica –, ar refrigerado, calefação central, máquina lava e seca importada “e até um gracioso playground no térreo”, onde certamente seus três filhos brincaram muito.
Logo na primeira semana, contratou “uma espanholinha veloz” para os afazeres domésticos. Ela fazia de tudo, menos lavar roupas de tecidos mais finos, que eram entregues a uma senhora que, dois dias depois, as devolvia imaculadas numa cesta oval. Nas ruas, os táxis, conduzidos por motoristas engravatados, estavam sempre à disposição, por preços módicos. O metrô não atrasava, os bondes eram cômodos e ninguém ia em pé. Nos restaurantes, com grande fartura de vinhos estrangeiros nas adegas, comia-se e bebia-se divinamente gastando pouco. No cinema, todos compravam entrada com antecedência, evitando filas e tumultos, e aguardavam a hora da sessão em cafés e sebos, que ficavam abertos até de madrugada.
Em suma, Maria Julieta vivia o sonho da classe média, desfrutando dos prazeres da vida tranquila, com ampla e barata oferta de serviços dos trabalhadores. Naqueles primeiros anos de peronismo, na capital argentina “vivia-se numa atmosfera refinada e lenta, em que os costumes da grande urbe não escondiam a marca de certa rotina provinciana”, constatou a cronista.
Quase três décadas depois, em 1978, refletindo sobre as Coisas de antes e de agora, a escritora chegou à inevitável conclusão dos melancólicos: os tempos mudaram, e para pior. A mudança foi acontecendo “tão sutilmente que a princípio a gente não dava pela coisa”. Pouco a pouco, o metrô deixou de praticar a pontualidade inglesa e “os ônibus, de tão cheios, estavam inabordáveis”. Os taxistas, já não mais simpáticos, passaram a só trabalhar nos primeiros dias do mês e exigiam pagamento antecipado. A cidade que tinha encontrado antes não existia mais. Na Buenos Aires de agora, faltava sossego, tempo e dinheiro, mas sobrava lixo – e ratos, por supuesto, na proporção “de oito para cada habitante urbano”. Mas deixemos de lado as pilhas de saco preto, às quais a cronista dedica ainda dois parágrafos de seu texto, para não comprometer muito o clima do que vem a seguir.
Uma tarde, em Buenos Aires, anos antes da multiplicação dos ratos, Rubem Braga andava meio triste, fechado em seu capote e em seu silêncio. Era um dia escuro de inverno e o cronista ia pelas ruas do centro junto da multidão, “que desfila pela penumbra como um rio grosso com seu murmúrio”. Braga deixou-se ir pela rua Florida, dobrou na Tucumán, subiu até Suipacha, desembocou na Corrientes, e nesse itinerário ele era mais um na multidão. “E a multidão me embalava e me fazia bem”, escreveu. Andando sem pressa de “capote e sapatos grossos” entre “desconhecidos irmãos”, sentiu-se mais livre em terra estrangeira.
No caminho de volta ao hotel, lembrou-se de um soneto de Alfonsina Storni: “lo encontré en una esquina de la calle Florida...”. Ficou com o verso na cabeça, pensando vagamente que aquele homem sem nome, encontrado por alguém na esquina da Florida, poderia muito bem ser ele, assim como qualquer outro homem. Disso, tirou um “vago e particular consolo” qualquer. E na mesma rua Florida, Braga também encontrou alguém: um casal de amigos brasileiros em lua de mel. Os dois estavam visivelmente felizes, “alegres deles mesmos e tudo o mais”.
“Estimei encontrá-los”, escreveu, “e a felicidade do casal me fez bem, mas senti, com certa curiosidade, que no fundo de mim não havia a menor inveja”. Àquela altura da vida, sua “longa tarefa” não era mais buscar a felicidade, mas “não ser infeliz e me proteger e guardar, ser forte dentro de mim, forte, quieto e sereno”. Houve um tempo em que Braga, como todos, procurou pela felicidade. E, nesse caminho, “mais de uma árvore deixou cair flores” sobre sua cabeça. Mas aquele tempo tinha passado, simplesmente. Como passava agora a multidão de Buenos Aires, andando, andando, andando, e no meio dela o cronista seguia “lentamente, distraído e tranquilo como um boi”.
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Nota do editor: Vale mencionar que a citada Alfonsina Storni, que nasceu a bordo de um navio, foi a inspiração da belíssima canção “Alfonsina y el mar”, imortalizada na voz de Mercedes Sosa, sobre seu suicídio nas ondas do Mar del Plata.