Fonte: Coleção Melhores Crônicas: Maria Julieta Drummond de Andrade. Seleção e prefácio de Marcos Pasche. Global, 2012,  pp.205-208. Publicada no livro Um buquê de alcachofras,1980.

Há muitos anos, quando vim morar aqui, encontrei uma cidade onde viver era delicioso. Instalei-me sem dificuldade num apartamentozinho novo, que não era luxo, mas já tinha (lá se vão mais de cinco lustros) campainha automática – dessas que eu só conhecia através do cinema, e que permitem ao dono da casa saber quem está chamando e abrir-lhe a porta mediante um simples botão, comprimido na cozinha – ar refrigerado e calefação centrais, duas geladeiras idem, máquinas de lavar e secar roupas, importadas, e até um gracioso playground no térreo. Todo esse conforto californiano, e minha rua, por onde ainda circulava uma ou outra carroça, era de pedras, a duas quadras de Santa Fé, a avenida principal.

Em uma semana consegui telefone e empregada, uma espanholinha veloz, que arrumava, cozinhava e servia a mesa – de luvas! –, e para a qual eu era a señora menor, diferenciando-me de minha mãe, a señora mayor. A roupa mais fina era lavada e passada por uma velha que vinha buscá-la pontualmente e a devolvia dois dias depois, imaculada, numa cesta oval. Em noites de festas, a mulher do porteiro se oferecia para ajudar.

Todo o resto, no mesmo estilo: táxis vazios e baratíssimos, com motoristas engravatados, que durante o percurso faziam comentários sobre a política e o tempo e não aceitavam gorjetas; o metrô, que não atrasava nunca; bondes fechados e cômodos, onde ninguém ficava de pé. Os restaurantes cheiravam bem, quase todos forrados de madeira, estilo inglês, com grandes ventiladores no teto. Comia-se divinamente e bebia-se... Ah, encontrava-se qualquer vinho estrangeiro nas adegas, e todos acessíveis. À tarde, as senhoras tomavam chá nas confeitarias, com pãezinhos de minuto recém-feitos, sanduíches de todos tipo, petits-fours e bolos recheados, sublimes e irresistíveis, que passavam sobre um carrinho, de mesa em mesas. Como tudo isso custava poucos níqueis, havia muita gente gorda naquela época.

Ir ao cinema: que prazer! Compravam-se as entradas cedo, sem fazer fila e, antes da sessão, tinha-se tempo para tomar um café com creme na esquina, ou descobrir e folhear preciosidades nos sebos que ficavam abertos até de madrugada. Com lugares marcados e vaga-lumes solícitos, não havia atropelo à entrada; na saída tudo se processava com a mesma ordem e educação; as pessoas se desconcentravam vagarosamente e desfilavam pelas ruas centrais, muito iluminadas, comentando o filme e olhando vitrinas. Vivia-se numa atmosfera refinada e lenta, em que os costumes da grande urbe não escondiam a marca de certa rotina provinciana.

Mendigos, nenhum; os homens mais modestos usavam sobretudo, chapéu e luvas de lã, no inverno. As crianças, redondas e coloridas, floresciam pelas praças, onde jardineiros permanentes impediam que a grama fosse invadida por grandes e pequenos. E como tudo era limpo... Não se viam papéis pelas sarjetas; os garis mantinham as ruas impecáveis; os lixeiros, que nunca faziam greve, chegavam ao amanhecer, em silêncio; as feiras, armadas em lugares fixos, vendiam um peixe inodoro e, pouco depois do meio-dia, não sobrava uma folhinha de alface no chão.

Bons tempos, esses tempos de outrora. Pouco a pouco foram sendo substituídos por outros, tão sutilmente, que a princípio a gente não dava pela coisa. Era preciso que algum viajante comentasse, depois de uma ausência prolongada; “Está tudo tão difícil: que é que houve?” – para começarmos a perceber a mudança. Víamos então que as poucas carroças haviam sumido junto com os bondes; o metrô passara a ser um dos meios de transporte mais impontuais; os ônibus, de tão cheios, estavam inabordáveis, e os táxis só podiam ser tomados (quando apareciam) nos primeiros dias do mês, logo depois do pagamento. Onde estavam os trabalhadores gentis e as copeiras eficientes? Sorte se ainda se podia conseguir alguma meninota inexperta, ensinar-lhe os rudimentos culinários e perdê-la assim que ela se sentisse apta para buscar nova ocupação.

Apartamentos bem apetrechados, playgrounds a domicílio, praças vicejantes, restaurantes bons e baratos, confeitarias cheias, cinemas tranquilos, ruas limpas, povo bem-vestido: Que é isso? – hão de exclamar, se inquiridos, os pálidos garotos modernos, que nunca viram nada parecido. Em compensação, não haverá um que ignore a inflação e o desafio diário que os pais têm de enfrentar para subsistir nesta capital, que perdeu o encanto antigo e se deixou asfixiar por todos os vícios da chamada civilização. Hoje, aqui, falta sossego, falta tempo, falta lugar, falta luz, faltam coisas – falta dinheiro. Mas sobra lixo.

Eis a última perplexidade dos portenhos: como a fumaça do lixo queimado nos fornos, que todos os edifícios sempre tiveram no porão, estava contaminando demais o ambiente, uma saudável portaria municipal acaba de proibir essa operação. As lixeiras individuais foram clausuradas e a população instruída no sentido de reunir as sobras domésticas em sacolas de polietileno, que depois das 9 da noite devem ser colocadas ao lado do elevador de serviço. O porteiro as recolhe de manhã e junta todas em outra sacolona, a qual por sua vez é posta na calçada. Assoberbados de trabalho, os lixeiros vêm tarde ou não aparecem. Os depósitos gerais também não estão preparados para receber tal quantidade de detritos, mas as autoridades se sentem em paz, pois estabeleceram um prazo máximo de dois anos para que os moradores dos edifícios de mais de 25 apartamentos instalem, no lugar do forno inútil, máquinas compactadoras, que reduzirão o lixo a pequenos e confortáveis volumes. (Estão sendo fabricados a toque de caixa e algumas empresas já a anunciam, por preços inatingíveis). A quinta-feira, 12 de janeiro último, em que essa medida entrou em vigor, foi sugestivamente batizada pelo prefeito de “Dia do ar puro”.

Pensando bem, talvez não haja motivos para queixas – pelo contrário. Em primeiro lugar, e até que a cidade se transforme, inteira, numa gigantesca lata de lixo, respiraremos um oxigênio refinado que nos fará bem ao corpo e à alma, habilitando-nos a empreender com entusiasmo a batalha de cada dia. Depois, os fabricantes de sacolas enriquecerão rapidamente (não assim os de compactadores), o que não deixa de ser exemplo estimulante para o povo. E por último, por que não simpatizamos um pouco com a alegria dos ratos argentinos, que já existem na proporção de oito para cada habitante urbano, e que daqui a pouco poderão superar amplamente esse recorde? 

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