Foliões às avessas

Carnaval, Diamantina-MG, s.d. Foto de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Correndo o risco de espantar o leitor que ensaia o samba o ano inteiro, hoje vamos falar de cronistas pouco chegados no Carnaval. Nem é preciso pedir licença para apresentar a turma que prefere o sossego, pois o Bloco do Sofá dispensa a abertura de alas. Para se filiar ao movimento, não é preciso ser, de fato, indiferente à festa – mas pode ser, também. Basta não se deixar contagiar pelo tamborim da avenida, ter certa indisposição preguiçosa, ser fiel a um desejo de conforto constante.

Carlos Drummond de Andrade era desses. Preferia Ficar em casa. Dizia isso desde 1934, quando publicou Brejo das almas, seu segundo livro de poemas. Um deles, espécie de lampejo lisérgico anticarnavalesco, abre assim: “Deus me abandonou/ no meio da orgia/ entre uma baiana e uma egípcia”. Durante a festa de Momo, o poeta gostava mesmo de “passar quatro dias e quatro noites em casa, vendo o carnaval passar; ou não vendo nem isso, mas entregue a uma outra e cifrada folia”, uma que também abre “suas pétalas de cansaço” na quarta-feira de cinzas, como se fosse de fato um folião. Preferia não ligar a televisão nem o rádio e “perceber apenas o grito trêmulo, trazido e levado pelo vento, de um samba” distante. Penetrar “no vazio do tempo sem obrigações” e, mais do que aceitar a solidão, “escolhê-la; desfrutá-la”. “Sorrir dos psiquiatras que falam em alienação do mundo” e “estimar a pausa como um valor musical, o intervalo, o hiato”. “Andar de um quarto para o outro” e encontrar objetos que não procura. “Sem mescalina”, descobrir “as cores que a cor esconde” e “os timbres entrelaçados no ruído”.

Recusar o Carnaval para, durante quatro dias, realmente habitar a casa “como ilha, fortaleza, continente: infinito no finito”. Olhar as paredes “em torno dos quadros”, “sentir a casa como um todo e como partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós, à nossa revelia, contra o nosso desdém”. Arrumar os livros, “primeiro com método”, “depois com voluptuosidade, fazendo com que cada prateleira exija o maior tempo possível”. Tirar o pó dos exemplares, “reler dedicatórias” e abrir, ao acaso, os livros preferidos de poemas para “copiar meia estrofe por onde corre um arrepio verbal”. Separar os tantos volumes “que não nos falam mais nada e que devem tentar seu destino em outras casas”, mas deixar que os sobreviventes “fiquem a sós conosco e nos confiem seu segredo”.

Ao ronco da barriga (nunca o da cuíca), “admitir a fome, sem exigência de horário”, e “matá-la com o que houver à mão”, renunciando à ideia de almoço e jantar, “em reverência ao sagrado direito que assiste a todos” de brincar o Carnaval. Por fim, “descortinar na preguiça um espaço incomensurável, onde cabe tudo”, e não enchê-lo por completo. Só assim é possível curtir a festa em paz, sem nenhuma obrigação, “sem fugir, sem brincar”, mas divertindo-se num “canto umbroso” da casa.

Lima Barreto também se aborrecia com o Carnaval. “Nunca fui carnavalesco”, disse, “mas, como todo melancólico e contemplativo, gosto do ruído e da multidão e não fugia a ele”. Porque o isolamento fazia mal ao seu pensamento, o cronista mergulhava “no barulho dos outros” para deixar de pensar nas fantasmagorias que criava para seu padecer. “A embriaguez que a multidão traz é a melhor e a mais inofensiva de todas que se tem até agora inventado”, muito superior ao ópio, ao álcool e ao haxixe – ou melhor, hachisch, como se grafava em seus dias.

Se fosse rico, viajaria todos os anos para as “célebres festas” de “grandes aglomerações humanas” no mundo todo: iria à Índia “quando fosse a época das peregrinações dos bramanistas ao Ganges”, iria a Meca “no auge das visitas dos muçulmanos ao túmulo do profeta”, mas queria fugir do carnaval do Rio. A razão, portanto, não era o bololô, mas o zum-zum-zum – isto é, a música.

Sobre o carnaval, ao contrário de Drummond, Lima não tinha nada de bonito para dizer. Considerava a trilha sonora das ruas – “cantigas, sambas, fados” – de um nível tão baixo que queria distância. Não pense que o cronista partilhava da opinião da polícia, que censurava apresentações de “coplas francamente pornográficas e porcas”. O problema era de cunho artístico e intelectual, não moral. Para ele, os “rapsodos carnavalescos” viviam de “estribilhos e cantigas sem nexo algum”. Uma imensa “pobreza de pensamento” assolava os “vates dos cordões e ranchos”. Em matéria de “concatenação de ideias, de sentido” e de efeitos poéticos, preferia a “poesia dos alienados” – isto é, dos maus poetas.

Antes da festa, os jornais costumavam divulgar as composições frescas. E para ilustrar seu argumento, o cronista pinçou dois sambinhas – duas “cantarolas da cordoalha carnavalesca” – que, cá entre nós, não chegam a ser primores da música brasileira, mas também não são mera “trapalhada de palavras”, como quis o escritor. Nem mesmo Sinhô, frequentador assíduo do terreiro de Tia Ciata e compositor de clássicos como “Jura”, escapou da ira anticarnavalesca. Dele, Lima transcreveu “Fala meu louro”, um partido alto com o refrão pontuado por um papagaio – “cuja relação com o resto não se atina qual seja”, atacou o cronista.

Apesar de aborrecido com aquela “enxurrada de vocábulos que não querem dizer nada”, Lima fez questão de dizer que não tinha “nenhuma espécie de antipatia pelo folgar do povo”. Só queria cobrar dos trovadores “mais gosto”, mais sentido “nesse poetar de suas almas alanceadas”, que procuravam “no riso, no gargalhar e no estonteamento” do Carnaval “esquecer o seu penar e a sua dor”. Como todos nós. Menos, é claro, os que preferem ficar em casa.

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Nota do editor: Se você estava em busca de folia, recomendamos a leitura de “O bloco dos cronistas” e “Fantasias para o Carnaval”, de Humberto Werneck, que destacou crônicas carnavalescas do nosso Portal.