Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, pp. 137. Publicada, originalmente, em [fevereiro, 1920] e, posteriormente, no livro Feiras e mafuás, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 208. 

Atribuo em parte ao meu avanço no tempo, se uma tal coisa se pode dizer, o aborrecimento que me causa o carnaval atualmente.

Nunca fui carnavalesco, mas, como todo melancólico e contemplativo, gosto do ruído e da multidão e não fugia a ele.

O isolamento faz-me mal à alma e ao pensamento. Mergulho no barulho dos outros, deixo de pensar em mim e nas fantasmagorias que eu mesmo criei para o meu padecer. A embriaguez que a multidão traz é a melhor e a mais inofensiva de todas que se tem até agora inventado. Nem o ópio, nem o álcool, nem o hachisch produzem a embriaguez que com a dela se assemelhe. Temos visões extranormais, sem estragar a saúde...

Se tivesse herdado uma grande fortuna e até hoje a tivesse conservado, havia de marcar nos dias presentes a minha vida e a minha estada, em várias partes do mundo, pelas célebres festas que, nelas, determinam grandes aglomerações humanas. Iria a Benares, na Índia, quando fosse a época das peregrinações dos bramanistas ao Ganges sagrado e do sagrado banho no rio divino; iria a Meca, no auge das visitas dos muçulmanos ao túmulo do profeta; iria a todas as festas e cerimônias dessa natureza; mas, atualmente, fugiria do carnaval do Rio de Janeiro, que não se pode agora assistir em são e perfeito juízo. Vou dizer o motivo.

Não partilho da opinião da polícia, nem muito menos tenho os melindres pudibundos da “Liga” do senhor Peixoto Fortuna; o que me aborrece mais no atual carnaval é a conclusão a que fatalmente chego ao ouvir as suas cantigas, sambas, fados, etc., ao ouvir toda essa poética popular e espontânea, de não possuir o nosso povo, a nossa massa anônima, nenhuma inteligência e de faltar-lhe por completo o senso comum. Mete horror semelhante pensamento.

O ponto de vista de imoralidade e chulice pouco me preocupa; o que me preocupa é o intelectual e artístico, tanto mais que, se este, segundo as suas forças, fosse obedecido pelos nossos bardos carnavalescos, certamente a imoralidade e a chulice ficariam atenuadas e disfarçadas. Tal coisa, porém, não se dá; e na impossibilidade, devido à polícia, de entoarem coplas francamente pornográficas e porcas, não têm os rapsodos carnavalescos outro recurso senão lançarem mão de estribilhos e cantigas sem nexo algum. Uma tal pobreza de pensamento no nosso povo causa a quem medita piedade, tristeza e aborrecimento. Por isso fugi ao carnaval e ele agora me é indiferente.

Conheço a poesia dos alienados, tenho até em meu poder exemplares dela; mas, se compararmos as suas produções com as que são cantadas nos nossos três dias de Momo, toda a vantagem de concatenação de ideias, de sentido e mesmo de propriamente poesia, vai para a banda dos dementados.

Seria tolice exigir dos vates dos cordões e ranchos coisas impecáveis em qualquer sentido. O que, porém, podiam mostrar é que eram capazes de não desmentir o estro dos nossos humildes cantores roceiros do “desafio”, que são verdadeiramente povo; entretanto, raramente caem com as suas quadras no contra-senso ou, melhor, no sem-senso, agravado do palavreado oco e idiota da atual musa carnavalesca.

Os jornais, ou, antes, um jornal observou mais ou menos isto que eu estou aqui dizendo; mas sem confessar que a culpa é deles, pois animam a vaidade de tais poetas, publicando-lhes, sem exame, a sua enxurrada de vocábulos que não querem dizer nada. Estou certo de que, se para a sua publicação e competente elogio, os cotidianos exigissem mais alguma coisa que não uma trapalhada de palavras, melhor eles fariam.

Nos dias que precederam o carnaval, pois escrevo no sábado, véspera dele, andei pelas seções competentes das folhas, colecionando as cantarolas da “cordoalha” carnavalesca. Cansei-me logo, pois me aborreci com tanta bobagem acumulada; entretanto, guardei algumas. Lá vai uma. Vejam só este pedacinho do Parnaso carnavalesco:

Primeira parte:

Para a nossa vitória
nós espalhamos,
pelos caminhos,
os risos de alegria
e os gorjeios
dos passarinhos,
e ao surgir da lua
no céu sem brumas,
no céu tão lindo,
nós da Estrela de Ouro,
cantando em coro,
vamos fugindo.

É preciso não esquecer que se trata de uma “Estrela de Ouro” que espalha risos de alegria e... gorjeios de passarinhos, além de perpetrar outras proezas estrelares.

Encontrei também uma outra cantoria, que, além de ser dedicada à Bahia, é oferecida ao Clube dos Democráticos, na qual entra um papagaio, cuja relação com o resto não se atina qual seja. É um modelo do gênero e vale a pena transcrevê-la toda inteira do jornal que a publicou.

Ei-la:

FALA MEU LOURO

(Samba do Partido Alto)
Dedicado ao Estado da Bahia e oferecido
ao Clube dos Democráticos

Por J.B. (SINHÔ).

Primeira Parte:

A Bahia não dá mais coco
Pra botar na tapioca (bis)
Pra fazer o bom mingau
Pra embrulhar o carioca (bis).

Segunda Parte:

Papagaio louro (corrupacopapaco)
Do bico dourado (corrupacopapaco) (bis)
Tu que falavas tanto
Qual a razão que vives calado? (bis).

Terceira Parte:

Não tenha medo
Louro de respeito (bis).
Quem quer se fazer não pode,
Quem é bom já nasce feito (bis).

Fazendo estas despretensiosas considerações, não me move nenhuma espécie de antipatia pelo folgar do povo; mas, pedir unicamente a ele próprio que nessa sua folgança, nesse poetar de sua alma alanceada, quando procura, nestes três dias, esquecer o seu penar e a sua dor, no riso, no gargalhar e no estonteamento, pusessem os seus trovadores mais gosto, mais sentido, compusessem mais cantares que pudessem ser entendidos, coisa que não lhes é impossível, pois todos conhecemos as poesias roceiras, as quadras populares, quase sempre expressivas e denunciando verdadeira poesia.

Para terminar, e para desmentir a indiferença que, mais acima, afirmei ter pelo nosso carnaval, ponho sob os olhos do leitor este humorístico telegrama:

Belo Horizonte, 13 (Serviço especial da A Noite) – A Liga pela Moralidade oficiou ao chefe de polícia, pedindo-lhe que proíba às bandas de música que vão tocar nos coretos da avenida Afonso Pena, durante o carnaval, a execução de tangos e maxixes. A mesma Liga alega nesse ofício que tais músicas são provocantes.

É de rir, não? Pois quase fez chorar o senhor Peixoto Fortuna, o da nossa “Liga” carioca, porque não lhe ocorreu semelhante lembrança.

Sabemos, entretanto, que, no futuro carnaval, as bandas de música tocarão nos coretos o “Réquiem” de Mozart, a “Marcha Fúnebre”, de Chopin, embora nos coros das igrejas, conforme propagam os entendidos, se executem músicas bem profanas.

Em todo caso, a ter um carnaval litúrgico, é preferível continuar o que está, tanto mais que não posso, totalmente, fugir de qualquer um deles. 

lima-barreto