Melanie Farkas, São Paulo-SP, 1940 final dos anos. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Dizem que não existe ateu quando o avião treme. Se depender da senhora que Paulo Mendes Campos flagrou Anteontem, em um avião de Belo Horizonte para o Rio, não existe mesmo. Ao contrário de seu filho de 12 anos, que tinha “os olhos abertos da alegria infantil”, ela estava “com os olhos esbugalhados de pânico” e o coração apertado pelo tempo instável, pelas nuvens carregadas com pinta de aguaceiro. Quando o avião se meteu “no espesso nevoeiro”, a mãe “tirou da bolsa dois poderosos terços, estendeu um ao garoto” e imediatamente começou “a desfiar o outro”. Inabalável, a criança recusou o rosário, alegando que um era suficiente, mas sofreu a censura materna: “Não, menino, você reza pelo motor direito, que eu rezo pelo esquerdo”. Deu certo.
Certa noite, a bordo de um “avião que não podia aterrar”, Antônio Maria achou que fosse morrer e rapidamente habituou-se “à ideia de morte próxima”. A lucidez e o perigo da situação lhe aguçaram sentidos sobre-humanos, refinando uma capacidade de “ver e sentir” tudo com deslumbrante nitidez. Sabia, por exemplo, “até onde era verdadeira a serenidade da aeromoça” e quando “começava a mentira” no rosto apavorado de um companheiro de bordo. No terror de um de seus colegas, notou “um fingimento acrescentado”, “uma vaidade lírica” que o fez deixar escapar um nome de mulher. Na poltrona de trás, um jovem rezava muito, mas “sem Deus algum no coração”. Se quisesse mesmo pedir ajuda divina, pensou Maria, teria clamado por Cristo “com um grito ou com um gesto”, pois a aeronave precisou dar muitas voltas em torno do Corcovado, e “nada poderia assemelhar-se mais a um milagre que ver Cristo tão de perto, tão iluminado e branco, tão grande e tão deus, pairando entre a noite do céu e a das montanhas”.
Naquela pequena “nesga do presente” que parece dilatar os minutos em situações de emergência, sobrou tempo para Maria se sentir “o mais possível em face do último acontecimento”. Lá embaixo, na terra, havia uma casa, que era a sua. Suas pessoas amadas “dormiam o cansaço e o silêncio dos seus corpos”, e o cronista evitava pensar nelas porque, “mesmo ao longe, uma delas poderia despertar, sacudida por um pressentimento”. Olhou em volta, para seus semelhantes, e viu suas “pobres vidas já quase sem futuro e sem calma para recordações”. Mas “as letras verdes do avião” continuavam recomendando que não fumassem, e aquilo era um sinal de esperança – pois se já não houvesse nenhuma, certamente dariam “permissão para fumar à vontade”. Na algazarra tranquila da iminência da morte, um único pensamento persistiu: qual seria sua última saudade? “E, sendo gente: quem?”
Outro cronista que se viu em apuros no ar foi Rubem Braga, que subiu ao avião com indiferença, leu um pouco do jornal e pegou no sono. Acordou com o grito da vizinha, uma senhora apavorada com o “nevoeiro fechado” que impedia o avião de aterrissar. Braga procurou acalmar a mulher “que, embora fizesse frio, se abanava com uma revista”. Tentou convencê-la de que aquilo não adiantaria nada, mas logo entendeu que “ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar”. Sugeriu substituir a revista pelo jornal, mais grosso, e a madame agradeceu, “como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse a maior eficiência na luta contra a morte”.
Durante a “aflição daquela senhora”, o cronista notou que ela tinha uma amiga sentada em outra fileira e ofereceu trocar de lugar. A vizinha esbaforida concordou, mas em sequência se arrependeu – disse “que assim mesmo estava bem” e que “preferia ter um homem ao lado”. O “orgulho de cavalheiro” inflou o peito do nosso escritor, que se sentiu “útil e responsável”. Era por estar ali um “homem decidido”, um Braga, “que aquele avião não ousava cair”. Era nisso que a senhora confiava: “nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando”.
Dispensando o socorro da aeromoça, ela só queria saber de Rubem Braga, que, com o braço sequestrado, arriscou um encontro de mãos. “Esse gesto de carinho protetor” resultou num “profundo suspiro de alívio” da vizinha, que “cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente” e “ficou imóvel, quieta”, como que adormecida. Quando o avião roncava mais forte, ele “fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar” de um aperto suave de mão, e assim a tensão foi se desfazendo.
Com sua missão cumprida, o cronista voltou “a olhar tristemente pela vidraça” e a pensar sobre a vida. E quando foi tomado por aquela porção de memórias “antigas, doces ou tristes” que nos arrebatam em momentos assim, se deu conta de que poderia mesmo morrer. Mas “a visão monótona daquela asa no meio da nuvem” esvaziou sua mente – “era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais”, e portanto não se importava com nada. A morte “devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre”.
Ao seu lado, a senhora se ajeitou na poltrona e estendeu o braço direito para segurar o encosto da poltrona da frente. E, de repente, Braga percebeu “que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado”. Ele o observou do “ombro forte e suave até as mãos de dedos longos”. E a contemplação deu espaço a uma “saudade extraordinária” da beleza humana, “da empolgante e longa tonteira do amor”. Já não queria mais morrer. A ideia da morte tinha voltado a parecer errada, feia, absurda.
Golpeado por uma súbita “fascinação da vida”, o cronista olhou de novo para a janela. Agora, atrás do nevoeiro, podia adivinhar “casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada”. As coisas voltaram a existir – “árvores, pessoas, chão”. Tudo graças ao calor e à “força macia de um braço” de mulher. Durante muito tempo, a Lembrança de um braço direito, aquele braço direito, foi para ele “a própria imagem da vida”, talismã de uma “profunda delícia” que é o “gosto de viver”, mesmo em meio a um nevoeiro a quilômetros e quilômetros do chão.