Sérgio Porto, década de 1960. Foto do estúdio Emerico Rio/ Coleção Ângela Porto.
Hoje é dia de festa. Sérgio Porto, ou melhor, Stanislaw Ponte Preta, o heterônimo que adotou, é o décimo quarto cronista da nossa escalação do Portal. O criador de alguns personagens que ainda hoje habitam o imaginário brasileiro chega com uma pequena amostra de sua inventividade ímpar e de seu estilo absolutamente livre em 14 textos selecionados, que vão do humor escrachado à fina melancolia da memória.
Muito bem acompanhado, o cronista estreia com o reforço vocal do músico Bruno Cosentino, que gravou uma leitura de “Casa demolida”, uma das mais belas crônicas de sua lavra, e da caneta de Sérgio Augusto, que assina um perfil biográfico saboroso e completinho: do início da labuta na imprensa, pelas mãos do tio e crítico musical Lúcio Rangel, até o infarto fulminante aos 45 anos, consequência de um ritmo avassalador de trabalho, está tudo lá, resumindo a breve trajetória do escritor que foi um dos mais populares humoristas de seu tempo. De quebra, Sérgio, o Augusto, também preparou uma cronologia detalhada do xará, muito bem-vinda em especial aos pesquisadores.
“Descontraído, irreverente, ocasionalmente lírico”, diz Sérgio Augusto, Stanislaw não tinha “cerimônia com a sintaxe ou a gramática”, como se nota na crônica “Quem não tem cão...”. Com frequência errava pronomes e preposições de propósito. Era “uma usina de neologismos e definições impagáveis”. Seu dialeto era o carioca, e escrevia “como se copidescasdo por um malandro”, ainda que dado, vez ou outra, a certas “palavras engravatadas”. Valia tudo para tirar sarro do moralismo vigente, em especial após o golpe militar de 1964 – chamado pelo cronista de “redentora”, com toda sua ironia usual.
Não é exagero dizer que o estilo próprio de Sérgio Porto antecipou um tipo de graça que, pouco depois de sua morte, foi consolidado em torno da geração de O Pasquim, o mais notável dos nossos semanários humorísticos, famoso por criticar a sociedade e a política descabida do regime militar com aguçada irreverência e uma inteligência muito rápida, abusando da paródia e da caricatura. E, ainda que a liberdade de rir de todos sem nenhuma cerimônia tenha feito com que algumas piadas envelhecessem mal para o leitor de hoje, mais atento a questões de gênero, raça e classe, o espírito de deboche foi assimilado por um estilo de vida. Tudo isso já estava nas colunas de Sérgio Porto – “Não era fruta”, por exemplo. De todos os nossos cronistas, foi ele quem levou o humor mais a sério.
Paulo Mendes Campos, em homenagem a Sérgio e Stanislaw Ponte Preta, escreveu um bonito perfil atravessado por memórias. Do amigo, destacou uma espantosa “vivacidade tão instantânea” que se traduzia num “discernimento agudo, preciso, a respeito de tudo: uma canção, um cantor, um vestido, um quadro, uma atmosfera, uma situação complicada”. Dizia sempre “a palavra exata, a observação certa, o julgamento justo”.
Como todo homem de sensibilidade, “precisava de amigos e afetos” e “desprezava os mesquinhos, os medíocres, os debiloides, os cretinos”. Amava os livros e os discos, os “milhares de discos” que ouvia o tempo todo, seja enquanto trabalhava ou recebia amigos. Aliás, com frequência as duas coisas se confundiam: “sob a afirmação (verdadeira) de que estava acostumado a escrever no meio da confusão”, Sérgio Porto batucava na máquina enquanto contava piadas, atendia ao telefone incessante e administrava as bolachas na vitrola. Ao mesmo tempo dotado de uma “extraordinária capacidade de trabalho” e “da calma que deve ser a dos monges tibetanos”, suportava o caos com tranquilidade.
Ademais, era “bonito, forte, elegante, inteligente, alegre, simpático – era um privilegiado sem ostentação”. Assim como ao restante do grupo, “só lhe faltava o dinheiro”. Por isso, era preciso “aceitar as ofertas que a imprensa” fazia como “um favor, bicando aqui e ali, sofrendo na carne os atrasos do caixa, brigando pelo dinheirinho de cada dia”. O clima, porém, não era “de miséria nem de tristeza”: bebiam crepuscularmente uísque escocês no Pardellas, dançavam no Vogue, andavam de táxi. “Já que o dinheiro era pouco, o jeito era gastá-lo no essencial: o apartamento próprio que esperasse.”
Por fim, Paulo Mendes Campos relembra a última noite com Sérgio Porto. Estavam em Belo Horizonte, jantando com Rubem Braga, Fernando Sabino e o irmão. No restaurante, aliás muito bonito, “tinha de tudo, menos comida mineira. Sérgio reclamou tristemente durante todo o jantar. Queria arroz, feijão, couve, linguiça”. “Não sei por que essa lembrança me comove e serve para fechar esta página que eu não queria triste”, ponderou Paulo. “Que a tristeza fique conosco, os amigos que o amavam.” Saudemos, portanto com alegria, o mais novo cronista do Portal. Um brinde a Stanislaw Ponte Preta.