Jabuticabas, rua São Jerônimo, Londrina-PR, 1965. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.
“Cada flor/ com sua forma, sua cor, seu aroma,/ cada flor é um milagre”, escreveu Manuel Bandeira em “Preparação para a morte”. Depois de testemunhar o nascimento de um abacateiro, Maria Julieta Drummond de Andrade quis acrescentar um versinho ao poema: “O abacate é um milagre”. Como não dava, o jeito foi glosar em prosa o seu maravilhamento pela “condição mágica desse fruto”, mais especialmente pelo seu caroço.
No dicionário etimológico, descobriu que caroço provavelmente deriva de cor, cordis, coração: “sendo o núcleo da fruta, é sobretudo o seu coração, sua parte sensível e palpitante”. De outro modo, não se explicaria “que um simples caroço de abacate pudesse resumir tanto mistério, tanta beleza prestes a eclodir e assombrar-nos com a sua perfeição”. Isso porque, depois de saborear a polpa (seja como prato principal, ao gosto dos argentinos, ou de sobremesa, como fazemos nós), a cronista mergulhou o caroço numa vasilha com água o suficiente para cobrir um terço de seu volume. “De forma arredondada, com uma das extremidades ligeiramente pontuda” e revestido por “uma película áspera, quase marrom”, nada naquele caroço fazia supor o que aconteceria depois.
Durante um mês, com a paciência que demanda a natureza, Maria Julieta trocou a água do recipiente todos os dias. Com o tempo, “um embrião de radícula começará a despontar” vagarosamente, sem pressa para nada, e então o caroço começará a ceder: “despega-se primeiro a pele escura, deixando entrever a rósea matéria úmida que estava encoberta”. Tudo isso, é claro, “com muita reserva”, “provavelmente no escuro” e “durante a nossa ausência”, pois a natureza detesta ostentações. Aí, “um pequenino volume verde, a princípio quase imperceptível”, vai ganhando corpo, “intenso, brilhante, fresco”.
O Abacate, pensou a cronista, finalmente começava a responder aos seus apelos. Mas, movido apenas pela lei da vida, “seu trabalho, silencioso e sábio, tem a precisão das coisas desinteressadas, que acontecem porque sim”, e não se importa com nossos desejos. Então, crescendo com infinita cautela, surge “uma haste leve, delicadíssima”, exibindo “projetos mínimos de folhas”. Dia a dia “o caule se alteia, até superar o cume do caroço” e, livre do confinamento, “lança-se ao ar, com duas folhas ovaladas”, ainda menos verdes que o verde-abacate.
Aí, tendo talvez atingido a maioridade, o broto acelera e desata a subir, com um prazer de existência íntimo, completo em sua nobreza vegetal. Maria Julieta contemplava admirada aquela planta que crescia exuberante mesmo tendo recebido apenas uma “precária condição de vida”, numa pequena vasilha de vidro. Se transplantada para a terra, provavelmente continuaria crescendo e crescendo até perfurar o teto da casa, até suas folhas alcançarem o inatingível, até que a cronista, à sombra da árvore, pudesse finalmente aprender a viver “com a paciência, a altivez e a liberdade” de um pé de abacate.
Muito menos mistério há na laranja, “fruta cítrica, suculenta e saborosa” que foi inventada por um industrial americano, conta Fernando Sabino. A invenção da laranja começa com este senhor, então um molecote numa fazenda da Califórnia que cresceu entre os laranjais. Homem feito, assumiu a plantação e, inspirado pelo criador da Coca-Cola, teve uma grande ideia para desbancar a concorrência de vendedores de laranjas: engarrafá-las. Investiu tudo o que tinha em maquinário moderno, mas depois percebeu que a garrafa, além de cara, “não preservava devidamente as qualidades naturais do produto em estoque, que com o correr do tempo acabava azedando”.
Disposto a fazer chegar ao consumidor o suco de laranja “com todo o cítrico frescor que a fruta diretamente chupada propicia”, tentou enlatá-lo. Mas para que a bebida não ficasse com aquele gosto característico de lata, era preciso adicionar alguns ingredientes químicos, o que feria o princípio básico do produto – ser natural.
Experimentou, então, as caixinhas de papelão com um pequeno orifício obturado, “pelo qual o consumidor introduziria um canudinho” e sorveria o caldo em paz. Logo verificou, porém, “que esta embalagem também apresentava sérias desvantagens”, sobretudo em relação à sua fragilidade, o que comprometia o transporte em larga escala. Aí, pensou em algo inovador: para aproveitar o recipiente natural da fruta, por que não servir o suco da laranja dentro de sua casca? “Então imaginou, encomendou e mandou instalar uma aparelhagem completamente nova, destinada apenas a extrair o miolo da laranja através de um orifício, sem inutilizar-lhe a casca”. Em pouco tempo, surgiram no mercado “as primeiras laranjas contendo no seu interior o suco já espremido”.
A ideia, porém, não durou muito. Em poucos dias, as cascas começavam a murchar e todo o frescor se dissipava. Foi então que o industrial se deu conta de que o suco, para se manter natural, deveria ser conservado no interior da própria fruta, do jeitinho que a natureza fez, “inventando assim o melhor acondicionamento de seu produto que jamais tivera a ventura de imaginar”. Com a imensa vantagem, entre muitas outras, “de poder ir diretamente das árvores ao consumidor, o que assegurava um mínimo de trabalho e um máximo de rendimento”, estava inventada a laranja. Ele correu para patenteá-la e, tempos mais tarde, vendeu-a para a concorrência junto com seus aparelhos e seus laranjais. Rico, mudou-se para Nova York e por lá “vive muito feliz, chupando laranja o dia todo”.
Um pouco mais ao sul, no Espírito Santo, havia um Cajueiro que já devia ser velho quando Rubem Braga nasceu. “Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro atrás de casa”, escreveu o cronista ao saber de sua queda. Como quem comunica a morte de um parente, a irmã escreveu-lhe uma carta com a notícia: o cajueiro tinha tombado “numa tarde de ventania”, causando um “fragor tremendo pela ribanceira”, e teve a delicadeza de cair meio de lado, “como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa”.
Muitas eram as árvores da infância de Braga, mas o cajueiro, espécie de guardião da família, era especial. Foi uma das poucas que sobreviveram ao tempo, mantendo-se firme e generosa até aquela fatídica tarde. O restante – os pés de pinha, de cajá-manga, a grande touceira de espadas-de-são-jorge, a “alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude” – foi sumindo aos poucos. Também já não havia tamareira, nem a parreira que cobria o caramanchão, nem os “canteiros de flores humildes” ou os “arbustos de folhagens coloridas”.
Mas o cajueiro permanecia. E cada menino que crescia tinha de aprender os seus segredos, pegando “o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé” e escalar a árvore, para lá do alto ver o “telhado das casas, o córrego, o rio e as ilhas, as casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde”. No último verão, Braga ainda o viu pleno “de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços”. Chovia e, mesmo assim, fez questão de levar o pintor Carybé para vê-lo de perto, “como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido”.
Na carta, a irmã disse que passou o dia abatida, pensando em sua mãe. E que seus filhos pequenos, depois de se recuperarem do susto causado pelo barulho da queda, foram brincar nos galhos tombados do cajueiro. Estavam carregados de flores.