Fonte: A cidade vazia. Rio de Janeiro, Agir, 1958, pp.19-22

Nem todos sabem que a laranja, fruta cítrica, suculenta e saborosa, foi inventada por um grande industrial americano, cujo nome prefiro calar, mas em circunstâncias que merecem ser contadas. 

Começou sendo chupada às dúzias por este senhor, então um simples molecote de fazenda no interior da Califórnia. Com o correr dos anos o molecote virou moleque e o moleque virou homem, passando por todas as fases lírico-vegetativas a que se sujeita uma juventude transcorrida à sombra dos laranjais: apaixonou-se pela filha do dono da fazenda, meteu-se em peripécias amorosas que já inspiraram dois filmes em Hollywood e que culminaram nas indefectíveis flores de laranjeira, até que um dia, para encurtar, se viu ele próprio casado, com uma filha que outros moleques cobiçavam e dono absoluto da plantação.

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Passou a vender laranjas. Como, porém, invencível fosse a concorrência de outras fazendas mais prósperas e a sua assim não prosperasse, resolveu um dia dar o grande passo que foi o segredo do sucesso do inventor da coca-cola, resumido num sábio conselho que lhe deram: engarrafe-a. Impressionado com essa história, resolveu engarrafar suas laranjas. 

Pior foi a emenda que o soneto, no caso a garrafa que a própria casca: depois de empatar todo o seu dinheiro numa moderna e gigantesca maquinaria de espremer laranjas, que dava conta não só da sua mas da produção de todos os outros plantadores da região, que passou a comprar, verificou que a garrafa não era o recipiente ideal para o caldo assim obtido, não só porque o preço dela não compensasse, mas também e principalmente porque o vidro não preservava devidamente as qualidades naturais do produto em estoque, que com o correr do tempo acabava azedando. Tinha mania da perfeição, o nosso homem, a despeito do gênio já de si um pouco azedo ― perfeição esta que, tornada realidade pela eficiência da indústria moderna, e possibilitada pelas virtudes alimentícias da própria fruta, levaram-no à prosperidade que ele hoje, sem trocadilho, desfruta.

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Tendo, pois, implicado com a garrafa, e disposto a fazer chegar ao consumidor o suco da laranja, com todo o cítrico frescor que a fruta diretamente chupada propicia, houve por bem que enlatá-lo seria a solução. Lamentável engano! Cedo percebeu que o produto assim acondicionado apresentava, entre outras desvantagens, a de não dar lucro nenhum. Mas, o que era pior, para que o suco em conserva não adquirisse, com o correr do tempo, aquele sabor característico dos alimentos enlatados, tornava-se necessário adicionar-lhe alguns ingredientes químicos ― o que, evidentemente, ia de encontro à mais específica das virtudes do seu produto, que era a de ser natural.

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Experimentou então as caixinhas de papelão parafinado, sem tampa, mas tão somente com um pequeno orifício obturado, pelo qual o consumidor introduziria um canudinho, podendo assim beneficiar-se do produto sem que este se expusesse aos efeitos nocivos a que o sujeitam as mudanças de recipiente. Logo verificou, porém, que esta embalagem também apresentava sérias desvantagens, como a da sua fragilidade, quando submetida aos rigores do transporte em grande escala de cidade para cidade.

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Depois de tentar sem resultado todas as espécies de recipientes existentes, desde a madeira até a matéria plástica, já começava a desanimar, quando lhe chamou a atenção a quantidade de casca de laranja que sua fábrica confiava diariamente à eficiência expedita dos lixeiros. Talvez a ideia tenha nascido apenas da necessidade de aliviar o trabalho deles, diminuindo o lixo e aumentando o lucro ― o certo é que se pôs a cismar numa forma de aproveitar tamanha quantidade de cascas (sabia, por experiência, que ao consumidor desagradavam as laranjas espremidas com casca) quando tal cisma se ligou à outra, antiga, relativa ao recipiente ― e a idéia nasceu. Então imaginou, encomendou e mandou instalar uma aparelhagem completamente nova, destinada apenas a extrair o miolo da laranja através de um orifício, sem inutilizar-lhe a casca. Em pouco apareciam no mercado as primeiras laranjas contendo no seu interior o suco já espremido. 

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A ideia não foi avante. Para que a casca, assim transformada em recipiente, não murchasse em poucos dias, tornava-se necessário um beneficiamento artificial extremamente dispendioso, que garantisse o permanente frescor do caldo como só a película natural dos gomos até então fora capaz.  Eis que o nosso grande industrial descobre repentinamente que o suco, para se manter fresco e natural, deverá ser conservado no interior da própria casca, inventando assim o melhor acondicionamento de seu produto que jamais tivera a ventura de imaginar. Com a grande vantagem, entre tantas outras, de poder ir diretamente das árvores ao consumidor, o que assegurava um mínimo de trabalho e um máximo de rendimento. Deslumbrado com sua invenção, correu à repartição pública mais próxima e encaminhou um pedido de patente. Tempos mais tarde, vendeu-a juntamente com sua aparelhagem e seus laranjais a um próspero fazendeiro da vizinhança, mudou-se para Nova York e com o dinheiro comprou um rico apartamento em Park Avenue onde, dizem, vive muito feliz, chupando laranja o dia todo. 

fernando-sabino