Se não fosse um sacrilégio, gostaria de acrescentar mais um verso ao poema de Manuel Bandeira, e proclamar: “O abacate é um milagre.” Mas como o poema em si já é um milagre de contenção verbal e emocional, o jeito é tentar glosar em prosa, mesmo canhestra, a condição mágica desse fruto da família Persea americana, ou mais propriamente do seu caroço.
Sempre acreditei nas palavras e em sua origem: nenhuma ciência, a meu ver, ensina tanto quanto a etimologia. Por isso, em minhas perplexidades, ando sempre às voltas com o dicionário, em busca não apenas de significação de cada vocábulo, mas do que ele realmente exprime em sua essência, e que em geral nos escapa. Não me surpreendeu, pois, verificar que caroço provém da forma coroço, derivada de cor, cordis: sendo o núcleo da fruta, é sobretudo o seu coração, sua parte sensível e palpitante. De outra maneira não se explicaria que um simples caroço de abacate pudesse resumir tanto mistério, tanta beleza prestes a eclodir e a assombrar-nos com a sua perfeição.
Vamos devagar. Tomemos o coração dessa grande baga comestível, depois de (se não tivermos problemas de colesterol) haver-lhe saboreado a polpa, como primeiro prato – à moda argentina, com molho americano – ou como sobremesa. Tem a forma arredondada, com uma das extremidades ligeiramente pontuda, e está recoberto por uma película áspera, quase marrom. Será necessário lavá-lo e observá-lo com cuidado: nada nele faz supor o que depois acontecerá: coloquemo-lo então numa vasilhinha de vidro qualquer (indispensável apenas, para nossa futura alegria, que seja transparente), com a parte mais chata para baixo e um pouquinho de água em cima o suficiente para cobrir-lhe um terço do volume.
A partir desse momento é preciso saber esperar. Os que não souberem, desistam. Ou por outra, tentem, pois provavelmente acabarão aprendendo a exercer essa virtude, capital sob todos os pontos de vista. E os que já nasceram ou se fizeram tranquilos aperfeiçoando esse pendor – o caroço de abacate beneficiará a todos. Enquanto aguardamos, todos os dias mudemos a aguinha do recipiente (onde aparentemente nada se está processando), reinventando um Valéry caseiro: Patience, patience, patience dans le vert!
Cerca de um mês depois, um embrião de radícula começará a despontar sobre a água. É tudo muito vagaroso no começo (a natureza nunca tem pressa): a segunda e a terceira ainda vão demorar. Só então notamos que o caroço começa a rachar-se pelo meio, no sentido vertical, de cima para baixo: despega-se primeiro a pele escura, deixando entrever a rósea matéria úmida que estava encoberta. Tudo isso ocorre com muita reserva (a natureza detesta ostentações) e durante a nossa ausência, provavelmente no escuro. Todas as manhãs percebemos que a fenda se aprofundou, sem contudo separar o caroço em duas metades, pois cessa antes de chegar à base.
É então que um pequenino volume verde, a princípio quase imperceptível, vai surgindo de dentro do caroço, intenso, brilhante, fresco. A emoção que sentimos e particularizamos: o abacate parece finalmente haver respondido ao nosso apelo! Só que ele não se dirige a ninguém em especial, e seu trabalho, silencioso e sábio, tem a precisão das coisas desinteressadas, que acontecem porque sim, movidas pela lei mais forte da vida, e não para deslumbrar-nos. Novamente uma dose extrema de paciência se torna fundamental, pois o broto cresce com infinita cautela e tem o seu tempo própio paralelo e alheio ao nosso.
Finalmente uma haste leve, delicadíssima, aparece, exibindo projetos mínimos de folhas, bem separados uns dos outros. Então o ritmo se modifica literalmente: a lentidão inicial se transforma num crescimento veloz, mas regular. Já mais grosso, embora sem perder a finura essencial, o caule se alteia dia a dia, até superar o cume do caroço e, liberto da concha que o encerrava, lança-se ao ar, com duas folhas ovaladas – de uma tonalidade ligeiramente menos viva que o chamado verde-abacate – tremulando na ponta.
A partir daí, já nada reterá o vigor e o ímpeto de expansão do nosso pé de abacate: seu prazer de existir é tão íntimo, tão completo, que basta a gente virar as costas para ele crescer um ou dois milímetros. E sobe ereto, despojado, com vários projetos de folhinhas despontando ao longo do caule e as primeiras folhas, já grandes, produzindo outras, lá no alto.
Admirável abacateiro doméstico: pergunto-me se estás sofrendo, contido em tua limitada panelinha de vidro, e me sinto tentada a transplantar-te para a terra, onde com certeza poderás vir a ser uma verdadeira árvore e frutificar. Ao mesmo tempo não ouso tocar-te, tão belo em tua solidão e em tua nobreza vegetal. Contemplo-te a cada momento e todo o meu ser te agradece: quisera poder imitar tua singeleza, tua frescura, a naturalidade com que aceitas a precária condição de vida que te ofertamos. Não será por acaso que, parente do loureiro, fazes parte das lauráceas. Se continuares subindo desse jeito – fico imaginando –, um dia hás de perfurar o teto de minha casa e te lançarás ao espaço, cada vez mais inatingível. Com as folhas que tombarem tecerei uma coroa para com ela cingir a fronte do meu bem-amado. Soberanos, ele e eu, da Ordem do Abacateiro, será proclamado nossa Árvore Sagrada e, à sombra de teu exemplo, aprenderemos finalmente a viver – com paciência, altivez, e liberdade.