Campanha publicitária da Brimex - máquina de escrever, 1951/10/27. Foto de Chico Albuquerque/ Acervo Instituto Moreira Salles.
São só duas as missões importantes do homem segundo Antônio Maria: amar e escrever à máquina. “Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.” Como o amor não é conversa para hoje, queira ir desculpando, fiquemos com a máquina. A sua, Maria levava no carro madrugadas adentro e a armava onde fosse preciso, sempre assombrado pelos prazos curtos dos jornais. Uma pena não ter registrado o modelo de sua datilográfica em crônica.
José Carlos Oliveira tinha uma Olivetti Lettera 32, tão leve e pequena que um frenesi de inspiração descuidado seria capaz de rompê-la. Comprada em Paris, a máquina tinha o padrão europeu de teclado, uma disposição excêntrica que exclui o til e outros de nossos gracejos gráficos. Por conta disso, escreveu no início “páginas confusas, sem calor, quase cabalísticas”, disse em “Máquinas de escrever”. Mas a verdade é que, independentemente do padrão, todo teclado novo demanda um tempo de reconhecimento tátil. A intimidade custa um pouco a se criar. Só depois de esquecer “que a máquina é um objeto”, só quando “se torna um prolongamento dos nossos dedos”, é que pode sair dali algo que preste.
Na escola, Carlinhos penava nas mãos de uma professora que o proibia de ser canhoto. Aluno que usasse a esquerda na sala de aula apanhava de verdade, com régua ou palmada. A hostilidade do mundo destro obrigava o menino a se endireitar, ignorando sua natureza motora. Resultado: ficou “analfabeto com as duas mãos”. Ninguém entendia seus garranchos. Foram anos abandonado no umbral das letras, até que, adolescente, encontrou a salvação em uma máquina de escrever. Como era preciso usar as duas mãos para pilotá-la, o cronista podia “ser canhoto a metade do tempo”. E as letrinhas de ferro deram jeito em seus manuscritos hieroglíficos. Quando percebeu, estava hipnotizado pelo tec-tec mecânico. Batendo as teclas por “horas e horas, dias e dias, semanas e meses”, tinha virado escritor.
A depender do horário, Paulo Mendes Campos tinha receio de tamborilar na máquina e acordar a vizinhança, confessou em “Escrever à noite…”. Mas ao se dar conta que seu vizinho de cima era também um escritor, cuja enorme Remington roncava sem escrúpulos a hora que fosse, ficou com a consciência aliviada. Pela cadência de suas teclas, Paulo deduziu que o escriba praticava todos os gêneros literários: “a poesia, o romance, o conto, o diário íntimo, a página solta, esta com a pretensão evidente de ser antológica”. Tratava-se, estava claro, de “um torturado da forma”.
O homem “tinha curso de datilógrafo e a frase rápida”. Depois de “três ou quatro períodos bem pipocados”, longos como os de Proust, “o rolo fazia o papel voltar ao início, para o trabalho penoso e nobre do estilo”. Rec-rec-rec. A máquina “riscava de xizes uma palavra” e então o silêncio pleno reinava – o mesmo silêncio que “pairava como uma auréola sobre a cabeça de Flaubert”. Uma longa pausa em busca da palavra exata, da expressão mais bela, da métrica adequada.
Quando acontecia de Paulo e o vizinho escreverem ao mesmo tempo, “o Leblon era transformado em um campo de batalha, com duas frentes” de artilharia encampada. Tudo era desarmônico naquela sinfonia: divergiam os estilos, os ritmos e as máquinas. O vizinho escrevia “grandiloquente e comprido”, com uma metralhadora pesada e por gosto próprio – um paladino em busca do ideal da beleza. Paulo escrevia “rasteiro e curto”, munido de um pobre fuzil de repetição e por necessidade – um mercenário a soldo módico. À rajada sonora de um ta-ta-ta, surgia um denodado te-te-te em resposta. Assim matraqueavam os dois na madrugada, num combate frenético que durava “até que os dedos cor de rosa da aurora” os tocassem.
Outro piloto veloz de máquinas de escrever era Otto Lara Resende, conhecido por sua datilografia de dez dedos. Certa vez, no escritório da TV Globo, um velho contínuo entrou na sala de Otto e deu com ele escrevendo, sem papel ao lado. “Ué”, espantou-se o homem, “o senhor tem redação própria?”.
Nas décadas seguintes, o mercado foi sendo conquistado pela novidade tecnológica da máquina elétrica. O modelo da IBM dispensava a força nos dedos – um toque suave, mais próximo do nosso de agora, já bastava para fazer literatura. Além disso, trazia uma modernosa esfera tipográfica no lugar daquela pesada carroceria que trepidava à flexão dos tendões de aço antigos. Quando ela surgiu, alguém na revista Time disse que o modelo estava para os outros assim como a caneta esferográfica estava para a pena de pato.
É claro que muitos escritores, salvo talvez os de vanguarda, reagiram mal à bolinha da IBM. Carlos Drummond de Andrade chegou a ganhar uma dessas da esposa, mas não se acostumou e repassou o presente para a filha Maria Julieta. Fernando Sabino também estranhou a novidade, mas topou o desafio. Claro que, no começo, levou uma surra, como se catasse carrapato com luva de boxe. Mal encostava no teclado e a máquina disparava a escrever letras a esmo, com a bolinha rodopiando cheia de vida. “Sinto-me desajeitado como um macaco, cheio de dedos e vazio de ideias, convencido de que jamais conseguirei escrever o que quer que seja nessa metralhadora elétrica”, escreveu em “Sob a carícia de meus dedos”. Mas já não tinha nem escolha: confiante em suas falanges experientes, doou sua máquina antiga tão logo chegara a nova.
O cronista resolveu buscar conselho com o amigo Jorge Amado. “Como é que você está conseguindo escrever com sua nova máquina?”, quis saber. “Que nova máquina?”, respondeu o baiano. Ora, é claro que Jorge Amado não se entregaria facilmente a nenhuma máquina de bolinha. Tudo o que tinha em seu escritório era uma comum, a quem devemos, em parte, o que seu dono trouxe à nossa literatura. Uma máquina já velhinha e, como Tereza Batista, “meio cansada de guerra”.