Fonte: A falta que ela me faz, Record, 1984, pp.37-41.

Quando eu era menino, uma das minhas distrações era ficar batucando na máquina de escrever de meu pai. Daquelas antigas, pesadas, deselegantes, que tinham uma inscrição no dorso negro, em letras douradas: Remington Rand. Hoje são peças de museu. Naquela, sem trocadilho, ensaiei as primeiras letras.

― Você tem de aprender direito ― disse meu pai.

E confiou-me a meu irmão, que me deu um manual de datilografia, passou a corrigir diariamente meus exercícios: linhas inteiras de ASDFG de cima baixo, HJKLÇ para a mão direita. Não me perdoava um erro, para passar ao exercício seguinte, referente às demais letras do teclado. Depois vieram frases engraçadas, como “O rato roeu a roupa do rei”, “O titereteiro tateava todo tatibitate” ― coisas assim. Esse duro aprendizado, se não ajudou a aprimorar o estilo, pelo menos fez de mim um razoável datilógrafo.

Com o correr dos anos, tornei-me um entendido em máquinas de escrever. Sei, por exemplo, de experiência própria, que a melhor já fabricada até hoje foi a Underwood, verdadeira preciosidade atualmente, no comércio de máquinas usadas. Das portáteis, fixei minha preferência na Olympia, alemã, até que surgisse a perfeição suíça da minúscula Hermes, que cabia numa pasta, joia para quem viaja e tem mãos leves. Passei por várias marcas e modelos, a que invariavelmente me afeiçoava como a uma companheira, e que (ao contrário das companheiras) sempre relutei em substituir, mesmo quando deixavam de corresponder ao que delas esperava.

Pois agora me vejo diante de algo que nunca julguei merecer: uma dessas máquinas elétricas com uma esferinha de tipos que corre sobre o papel em vez do carro que se desloca sob o martelar das letras, presas aos feios tendões de aço dos modelos convencionais. Sei que isso é coisa banal para qualquer datilógrafa hoje em dia, mas para mim é novidade. Novidade, aliás, que me recusei sempre a aceitar. Me lembro que a revista Time afirmou, quando ela surgiu, que a invenção estava para as outras máquinas de escrever como a caneta esferográfica está para a pena de pato. Minha literatura não merece tanto ― concluí então.

Pois aqui estou, aceitando o desafio da nova aquisição. E levando uma inesperada surra, que me faz lembrar um velho dito de infância: é como catar carrapato com luva de boxe. Mal meus dedos encostam no teclado, tateando como os de um cedo, a máquina dispara a escrever letras a esmo, a bolinha girando doidamente e de súbito voltando até o princípio da linha, o papel pulando espaços até ser expelido pelo rolo. Sinto-me desajeitado como um macaco, cheio de dedos e vazio de ideias, convencido de que jamais conseguirei escrever o que quer que seja nessa metralhadora elétrica. E o pior é que já passei a outra para a minha filha mais velha, certo de que poderá tirar dela melhor proveito.

Sem saber mais o que fazer, resolvo apelar para Jorge Amado. Sua filha me disse há tempos que ele tinha uma máquina destas. Quando o visitei pela última vez, vi em seu estúdio apenas uma máquina comum, não tão antiga como a de meu pai, mas, como Tereza Batista, já meio cansada de guerra. Cheguei a olhá-la com respeito, como se a ela devesse em parte o que de mais admirável seu dono veio trazer à nossa literatura. Certamente foi aposentada com todas as honras, cedendo lugar à bolinha mágica, na qual ele estará dando agora o arremate final ao seu novo romance.

Ligo imediatamente para Salvador:

― Como é que você está conseguindo escrever com sua nova máquina?

― Que nova máquina? ― estranha ele.

Ingenuidade, a minha: Jorge Amado é lá homem de escrever em máquina de bolinha? Sua incompatibilidade com as máquinas em geral se manifesta tão logo surge mais uma novidade. Zélia, sua mulher, vive a presenteá-lo com instrumentos que jamais aprende a se utilizar. Só aparelhos elétricos de barbear, já ganhou de aniversário três ou quatro, mas no que dependesse deles, estaria atualmente usando uma barba de Maomé. E no último Natal ela lhe deu o mais precioso presente, uma copiadora fotostática.

― Valeu a intenção ― lastima-se ele: ― Mas gasto 20 folhas de papel e não consigo tirar uma só cópia. E acabo sempre inutilizando o documento original.

Resolvo então recorrer ao meu amigo Marco Aurélio Matos, cujos conhecimentos vão além da sabedoria dos compêndios ás máquinas de escrever, de que, como eu, se tornou maníaco. Basta dizer que foi quem me vendeu esta, para adquirir novo modelo ainda melhor.

Ele me atende com a delicadeza de quem está lidando com um caso de amor: me diz que eu não posso ir de borzeguins ao leito; ela deve ser tratada com paciência, suavidade e carinho ― sobretudo carinho; nos primeiros dias, sensível demais ao mais leve toque, ela se esquiva, tímida e casta, como se não quisesse nada comigo; se nem por isso eu desistir, mas continuar a cercá-la de cuidados e atenções, ela acaba se tornando dócil à carícia de meus dedos e breve chegará o dia em que se renderá ao meu desejo, entregando-se toda ― a partir de então eu nunca mais hei de querer saber de outra.

Chego a pensar que ele não me entendeu bem:

― Não estou falando de mulher, e sim de máquina de escrever ― esclareço.

― Eu também ― confirma ele: ― Estou em lua de mel com a minha. 

fernando-sabino