Machado de Assis aqui

Rua do Ouvidor (antigo), Centro, Rio de Janeiro-RJ, 1890 circa.  Coleção Gilberto Ferrez. Foto de Marc Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Hoje, o Portal da Crônica Brasileira recebe o reforço ilustre, ilustríssimo, de Machado de Assis, seu novo integrante. O escritor é o décimo sétimo cronista da casa e, naturalmente, dispensaria apresentações. Mas como sua produção na imprensa não é assim tão conhecida, preparamos algumas palavrinhas para acompanhar as 20 crônicas machadianas já disponíveis por aqui.

O leitor pode conhecer mais sobre a vida de Machado navegando pela farta cronologia preparada por Katya de Moraes. Além disso, um texto introdutório, assinado pelo jovem pesquisador Gabriel Chagas, levanta algumas questões importantes de sua trajetória literária, desde os primeiros versos até a glória nacional do “escritor mais brasileiro que jamais houve”, nas palavras do crítico Antonio Candido.

Negro e de origem pobre, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839, no Morro do Livramento, e entrou para o jornalismo aos 16 anos, pela porta dos fundos, como aprendiz de tipógrafo da Tipografia Nacional. Depois, passou a revisor de provas e logo começou a colaborar com diversos periódicos, como o Diário do Rio de Janeiro, para onde resenhava os debates do Senado, escrevia anúncios, notícias, algumas críticas e o que mais nos interessa: as crônicas sobre a semana.

O Machado cronista tinha-se na conta de um “triste escriba de cousas miúdas”, mas não só – seu interesse era bastante amplo, como convinha ao folhetinista, e gostava de tomar parte em todas as polêmicas. Às vezes, suas crônicas tomavam rumos mais narrativos, como aquela famosa em que ironiza a Abolição da Escravatura pela voz de um senhor de escravizados. Querendo lançar-se a deputado, o narrador se vangloria por ter libertado, antes da assinatura da Lei Áurea, um rapazote que, sem ter para onde ir, permaneceu em sua casa. E tendo permanecido, continuou a receber pontapés e petelecos – meros impulsos naturais, diz o senhorio, incapazes de “anular o direito civil” adquirido pela alforria.

Há um meio certo de começar a crônica”, vaticinou Machado já em 1877: por uma trivialidade. Basta dizer “que calor!”, por exemplo. Então, segue-se falando de “fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjecturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela” e pronto, “está começada a crônica”. Não se pode precisar quando surgiu o gênero, “mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas” que se sentaram à porta “para debicar os sucessos do dia” – isto é, fofocar.

Digamos que as senhoras estivessem reclamando justamente do calor. Uma lamentou ter perdido o apetite, e a outra achava ruim andar com a camisa “mais ensopada do que as ervas que comera”. Passar das ervas para o jardim do vizinho da frente foi um pulo, e, daí, tratar das “tropelias amatórias do dito morador” era “a coisa mais fácil, natural e possível do mundo”. Eis a origem resumida da crônica. A história toda é maior e está disponível também em áudio por aqui, na impecável interpretação do ator Maurício Lima.

Os bondes, que circulavam por tração animal e transportavam cerca de 15 passageiros, eram um assunto recorrente de Machado. Ele chegou a propor algumas regras para seu bom uso. Em dez cláusulas, delimitou o espaço adequado para as pernas, sugerindo cobrar uma passagem extra de quem gostava de deixá-las abertas, e estabeleceu uma curta tolerância somática aos “encatarroados”: podiam tossir apenas três vezes por hora, ou quatro no caso de pigarro.

Em 1892, o Rio de Janeiro recebeu o primeiro bonde elétrico da América Latina, operado numa linha do Flamengo. Não tendo assistido à sua inauguração, o cronista nada tinha escrito sobre a novidade. Mas, pouco depois, andando pela praia da Lapa em bonde comum, cruzou com um elétrico que vinha descendo sob os cuidados de um condutor orgulhoso. Com “um grande ar de superioridade”, os olhos do homem passavam por cima de toda a gente no outro bonde, revelando uma firme convicção “de que inventara não só o bonde elétrico, mas a própria eletricidade”.

Aí, a crônica segue numa sequência de diálogos sobre o futuro – não entre os passageiros, mas entre os burricos que puxavam o carro. Com espantosa consciência de classe, os bichos sabiam que a tecnologia acabaria por dispensá-los: “Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos”. Dar voz aos burros é apenas uma das muitas artimanhas de Machado para prender a atenção do leitor. Ele já tinha a clareza de que é essa, afinal, a grande missão do cronista, restrito a um espacinho de subjetividade lírica no jornal. “Resta que me torne digno, não direi do aplauso, mas da tolerância dos leitores”, escreveu.

Não é exagero afirmar que o jornal deu a Machado um espaço adequado para encontrar e lapidar sua voz de ficcionista. Se não acredita, vá ler as crônicas que selecionamos. E veja se não estão lá, à disposição do leitor, a mesma pena da galhofa, a mesma tinta da melancolia de seus melhores romances.