Aos bares mortos

Praia ao anoitecer, Rio de Janeiro-RJ, década de 1940. Foto de Thomaz Farkas/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Antônio Maria foi uma das grandes figuras da noite carioca. Mais do que isso, fez dos prazeres e dos desencontros noturnos parte importante de sua poética. Em 1954, porém, ele andava um pouco desiludido com a boemia no Rio. Mesmo com a cidade fervilhando numa exuberante programação musical em bares, palcos e boates, o cronista achava que a noite estava “murchando nos lugares musicados, numa desalegria que se agrava de ano em ano”.

Não é que tivesse interrompido seu périplo pelas casas noturnas – nem poderia, já que um bocado de seu trabalho advinha das mesas de pista. Continuava batendo ponto em todas as boates de Copacabana, diariamente. A sua preferida era o Vogue, na avenida Princesa Isabel. Fundada em 1946 pelo barão austríaco Max von Stuckart, responsável por modernizar e revolucionar os padrões da noite carioca, sobretudo os gastronômicos, a casa teria, à altura da chateação de Maria, apenas mais um ano de existência, antes de ser devastada por um incêndio em 1955. Lá, com farta cozinha e o famoso piano de Sacha Rubin à disposição, artistas e intelectuais se reuniam para debater “o suicídio ou o assassinato da semana”.

Maria contente ou não, A noite em 1954 ia muito bem, a julgar pelo panorama generoso de bares que o cronista traçou, numa espécie de “mapa noturno e sentimental do Rio”. Estavam na sua lista, entre muitos outros, o La Ronde, que escalava uma portuguesa triste para cantar o fado “Perseguição”, o Bacará, local em que “se pode arranjar uma briga com certa facilidade”, e o Clube de Paris, onde nunca conseguiu entrar porque, na porta, era sempre arrastado por alguém até o Bacará. Na rua Fernando Mendes, outrora um de seus endereços, Maria gostava de jantar no Bistrô e de beber no Michel, em cujo aquário os peixes nadavam um balé a noite toda. O Farolito, um pouco mais adiante, era o mais bem decorado de todos. Mas seu verdadeiro mérito era o garçom Jean, que com um “ar de leigo franciscano”, costumava perguntar por “pessoas de um velho grupo desfeito, lembrando coisas passadas, distantes, perdidas para sempre”.

Também consta em sua seleta o restrito Clube da Chave, casa fundada pelo compositor Humberto Teixeira, famosa por funcionar em plena avenida Atlântica sem porteiro – cada sócio era responsável pela sua própria cópia da chave. Foi lá que Tom Jobim e Vinicius de Moraes se cruzaram pela primeira vez, três anos antes do “encontro oficial” na mercearia Vilariño, quando Lúcio Rangel propôs que Tom fizesse as músicas da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius. E o resto, sabemos bem, é história.

“Os bares não prestam”, escreveu Paulo Mendes Campos. Odiados por mães, esposas e filhos, esses “antros de perdição” acumulam rixas, despesas descabidas e saúdes comprometidas. É verdade. Mas, depois, acontece que os bares morrem, “e de seus túmulos surgem os espelhos, os mármores” e “a matéria plástica das agências bancárias”. Então, os velhos frequentadores, trançados e destrançados pelo tempo, passam a ser “cúmplices de um espaço, de duas ou três anedotas, de uma canção dissipada” no ar, numa “certa mistura de luz e sombra”.

Ali, nos bares que não existem mais, “os amigos foram mais amigos, os inimigos, mais inimigos, as mulheres, mais compreensivas, e a vida tinha um programa”. O Réquiem para os bares mortos de Paulinho, com grande experiência em se perder “pelas grutas sombrias dos bares”, é uma bela declaração de amor aos balcões do passado. Ama-se o bar morto porque ele é capaz de coagular o tempo em pequenos pingos de memória. Basta o cronista se aproximar deles para reconstruir, em vívida lembrança, o salão do Alvear, por exemplo. Ou do bar do Hotel Central, onde três homens se encontram à mesa – homens com quem o cronista pouco conversava, mas que hoje visita “com frequência nesse coágulo de treva e refulgência, onde os três convivas se abrigaram da morte”.

“Bar morto, bêbedo morto, caminho morto”, lamentou, consumindo de novo suas tardes já consumidas. Como as muitas que passara no Vermelhinho, famoso café onde se bebia muito mais cerveja que outra coisa. “Entreposto de todas as motivações humanas”, o estabelecimento serviu batidas a uma geração inteira, aninhada nas cadeiras de palhinha na calçada para discutir política, arte, teatro. Tudo isso aos batuques de um bom samba, pois naquele tempo “acreditava-se em samba”. “A vida tinha um caminho/ a vida tinha mais vinho/ nos juncos do Vermelhinho”, entoou o saudoso poeta.

Tempos em que “a vida era canto e conto”. Hoje, órfão de seus bares, o cronista é “um homem sem mais nada”, a exortar melancólico os brindes desfeitos de um Rio de Janeiro antigo – “Recreio velho, rogai por nós. Túnel da Lapa, Chave de Ouro, rogai por nós”, os “homens imaginosos” sem luzeiro e as “freguesas perdidas”. Resta-nos, portanto, recorrer aos bares enquanto ainda estão de portas abertas. Bebamos os chopes em vida.