Cronistas à beira-mar

Mulher na praia de Ipanema, Rio de Janeiro, 1955 circa. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Nem sequer chegamos no verão e o sol já está trabalhando a todo pique, com sua estuante indiferença de sempre. Mesmo os partidários do calor e do suor reconhecem que, brilhando assim tão forte antes da hora, o astro mais castiga que alegra. Para quem pode, o jeito é buscar o alívio das praias e das brisas litorâneas, como fizeram Rachel de Queiroz, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. Cada qual num recorte próprio mas todos com o pé na areia, os três escreveram crônicas à beira-mar que ilustram nosso assunto de hoje.

Como uma salva-vidas que a tudo vigia do alto, Rachel de Queiroz escreveu sobre a Praia do Flamengo, “uma nesga de areia nem sempre muito limpa e sempre terrivelmente superlotada”. Os seus banhistas eram marcados por uma mistura mais ou menos democrática de “cor, raça, condição social e até confissão religiosa”, mas seguiam uma divisão muito clara de idade conforme a hora do dia.

Antes mesmo de despontar o sol, os primeiros a chegar são os “de idade provecta”, do tempo em que o banho de mar era prescrito pela medicina. São contidos e se vestem com “maiôs de malha negra, inteiriços, de alça”. No trajeto até a praia, cobrem as ancas com um quimono discreto, um roupão delicado. Desfrutam da natureza quase em silêncio, que só é interrompido quando dá o horário das babás e das mamães, invariavelmente acompanhadas de numerosa prole em permanente tumulto: “choro de criança, palmadas, ralhos, papel de Kibon pelo chão”.

Depois, quando a juventude desperta, surgem os estudantes das pensões próximas. É uma rapaziada de pouco luxo e pouca roupa, preferindo exibir músculos, braços, peles bronzeadas. Seus calções, sempre puídos, certamente já embrulharam outras cinturas em verões passados, de estudantes já formados e devolvidos às províncias. A mocidade radiante atrai também moradores de outros bairros, interessados não apenas em óleos de bronzear e partidas de peteca, o que intensifica o trânsito praiano.

E, ao longo do dia, sem hora certa de mergulho, há sempre as trabalhadoras domésticas aproveitando os intervalos possíveis para descolar um bronze. A folga dura o tempo do cinema que a patroa decidiu pegar. Não raro o descanso coincide com o de seus pretendentes, galãs entregadores, caixeiros, feirantes, garçons e motoristas buscando o seu lugar ao sol, como todo mundo. “A toda essa gente”, a água da enseada “recebe, embala e diverte”.

Paulo Mendes Campos também se deixou levar pelo “aroma de sal lavado” e pela “inquieta serenidade” que se impõe Na praia. Sua areia é mais poética, seu mar é quase metafísico. Dispondo de “elementos suficientes ao espanto de viver e sentir”, isto é, a persistência do coração, a água salgada, a luz e os rins trabalhando bem, o cronista quase se esquece por completo das “vastas carências do homem” sofredor. Mas há sempre “pequenos vermes ocultos na areia” que não deixam nossa tranquilidade virar “uma alarmante inocência”: “obrigações a cumprir, amores a sonhar, coisas a providenciar”, tudo isso se funde em figuras abstratas que decantam mal dormidas “em nossas profundezas submarinas”.

Que pode um coração inquieto desses, interessado em tudo e em todos, fazer diante da brisa marítima? Tentar “merecer esta manhã de praia e sol, fechado por algum tempo nesta felicidade deslumbrante feita de egoísmo orgânico e cansaço”. “Nosso destino é morrer”, escreveu, “mas também é nascer”. E vamos ao mar.

Mais adiante, em outras paisagens, está Rubem Braga e a Viúva na praia. O cronista ia andando pela areia quando ficou fascinado pela imagem da jovem enlutada. Lembrou-se do enterro que passara sob sua janela e do morto, que conhecia vagamente, de cumprimentos murmurados no café da esquina. O maior diálogo que travaram foi quando Braga perguntou as horas ao garçom e o homem respondeu, antecipando-se. Às vezes, a moça ia na praia com o filho sem o marido, e quando o cronista a avistava, passava longe, respeitando os preceitos do casamento alheio, e nunca a olhava de frente.

Mas, agora, o homem está morto e a viúva está na praia, de maiô preto. Mas “não que o tenha comprado por luto; já era preto”. Ela tem, como sempre, um ar decente: “não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos”. Deve uma viúva ir à praia? “Se eu fosse casado, e morresse”, pondera o cronista, “gostaria de saber que alguns dias depois minha viúva iria à praia com meu filho”. Foi nisso que pensou, vendo a viúva. Mas se fosse casado, e morresse, “talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns dias depois”, um estranho que conhece de vista estaria olhando o corpo de sua esposa, ainda que discretamente.

Mas esse pensamento não era do morto, era do cronista, vivo e, portanto, com “uma grande superioridade” em relação ao falecido, a observar a viúva “vestida de água e de luz”, respirando “fundo o vento do mar”. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro dela. “Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo”, e o sol reluz também em seu joelho. “O sol ama a viúva”, e Rubem Braga a vê de longe, radiante.