Publicada no livro O amor acaba, Companhia das Letras, 2013, pp. 258-259.
Funciona esplêndida em cima da praia a máquina do sol. Custa admitir que a vida se cava em escritórios depressivos, nas jaulas dos guichês, repartições, filas, cemitérios do ser.
Amo esta amplitude, hoje verde, este aroma de sal lavado, esta inquieta serenidade. Seria um absurdo mitológico se um submarino nuclear surgisse à tona e nos destruísse, a nós que apenas pedimos neste momento um pouco de intimidade com as raízes da Terra.
Aqui dispomos dos instrumentos essenciais a um instante de equilíbrio: a persistência do coração, o trabalho do fígado e dos rins, a expulsar os venenos, água salgada, luz, elementos suficientes ao espanto de viver e sentir. Não fosse uma gaivota faminta, nem perceberíamos este espinho por dentro a denunciar as vastas carências do homem, pressentimento, sofrimento, aniquilamento.
Há pequenos vermes ocultos na areia para que a nossa tranquilidade não chegue a ser uma alarmante inocência. Obrigações a cumprir, amores a sonhar, coisas a providenciar, formam figuras abstratas que se deformam e quebram. Baste o sol. Baste o céu. Baste a escura arraia do instinto de conservação, a dormir mal dormida em nossas profundezas submarinas.
Penso em Ícaro às vezes, despenhando-se do rochedo a fim de legar ao mundo, segundo o bom senso da poesia, um fracasso importante. Em geral, nem penso: as nuvens me atrapalham o entendimento, os ventos me dispersam em outras idades, já não sei quem sou, enquanto chega uma esquadrilha de aviões para conferir e ameaçar o meu corpo, já esquecido de que era um triste corpo à espera dos monstros do juízo final.
Hoje o homem vive simultaneamente em todas as regiões do mundo. Dói-lhe a Terra inteira como se fosse uma extensão sensível de seu corpo. As ondas de rádio são as células nervosas desse imenso organismo a transmitir-lhe impressões e dores e apreensões e injustiças em forma de notícias. O jornal é o gráfico dessa vida nervosa suplementar, estampando diariamente a curva de nossas emoções universais, somando as parcelas do mundo em nosso comportamento psíquico e dividindo a nossa mal distraída atenção por todos os recantos.
Estamos interessados em tudo, envolvidos em tudo e em todos. Das experiências termonucleares às pesquisas sobre dor reumática. Das multidões esfomeadas da Índia à menina brasileira que furtou um pão. Das reviravoltas africanas às usinas de alumínio do Canadá. Dinamitaram as nossas torres de marfim.
Por isso mesmo, tento merecer esta manhã de praia e sol, fechado por algum tempo nesta felicidade deslumbrante feita de egoísmo orgânico e cansaço.
Hoje eu não sofreria nem por mim mesmo. Nosso destino é morrer. Mas também é nascer. O resto é aflição. Vamos ao mar.