Porque hoje é domingo

Bicicletas na praia, Rio de Janeiro-RJ, 1955 circa. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Domingo é dia de fazer observações “talvez não muito úteis, mas em todo caso honestas”, escreveu Rubem Braga. Por exemplo, que as casuarinas do parque estão crescendo e ficando belas. Coisas assim, sem importância prática. Nunca se deve esperar que algo de significativo aconteça, porque o “domingo não é um acontecimento, é um estado de seres e coisas”.

Um estado capaz de revelar muito. Veja só essa lojinha diante do cronista. Em dia de semana, tudo o que nela se vê é a “vitrina de mau gosto cheia de calçados e de enfeites vermelhos”. Às vezes “um sujeito na porta em mangas de camisa, às vezes uma senhora entrando” para comprar sapato. Ninguém, em dia útil, percebe o prédio velho que abriga a loja, muito menos seu charme de arquitetura antiga. Lá do alto, duas estatuetas de “mulherzinhas clássicas, de nariz reto e olhos vazios, com suas túnicas desenhando as formas do corpo”, cada qual “com um pequeno seio à mostra”, fazem a guarda do edifício. Copiadas de alguma escultura antiquada, não chegam a ser obras de arte, mas “dão um certo encanto à fachada”.

É uma pena que “essas modestas filhas da Grécia só existem aos domingos”. Durante a semana, tratam de desaparecer, pois de dia “é a loja aberta que chama a atenção do passante”, e à noite, “com a iluminação deficiente, são também pouco visíveis”. É preciso um domingo, preguiçoso e esticado, para que fiquem à vista.

“Ora, consideremos que, assim como essas, há outras moças que só existem aos domingos”, ponderou Braga. Moças de verdade, como essas três que passam agora, “cada uma com um vestido de uma cor”, todas “recentemente penteadas e pintadas”. “Com esse ar de quem foi à missa cedo”, passeou na praia, tomou banho de chuveiro e bebeu guaraná no almoço, devem estar a caminho da matinê no cinema. São tão profundamente dominicais, “na roupa, no jeito de andar, no estado de espírito”, que parecem também só existir aos domingos.

Depois do cinema, o dia entra naquele vão em que nada acontece, quando a tarde já terminou mas a noite ainda não veio. Domingo ao crepúsculo é a hora canônica da inércia, observou José Carlos Oliveira. “Uns pescam nas pedras; outros namoram nos bancos” – sobretudo as babás, que aproveitam a folga para esticar os cabelos e encontrar seus namorados, os “nordestinos da construção civil”, sempre “muito bem penteados” e de sapato engraxado aos domingos. Elas emanam um suave odor de sabonete e quase não gesticulam, “evitando suar nas axilas”. Quando ficam em silêncio por um momento, pensam naquelas praias com coqueiros, naquelas “redondas praças ornadas de palmeiras, onde o domingo não vale nada se não há refresco de groselha”.

Com a chegada da noite, as senhorinhas, “muito idosas para esperar qualquer coisa dos domingos”, estão tricotando nas salas. Pela milésima vez, elas tranquilizam a família, dizendo que estão bem assim, sozinhas. Podem sair, podem aproveitar o resto do dia, não é problema deixá-las em casa. “Secretamente irmanadas na solidão crepuscular”, todas afirmam que o domingo é mesmo para os jovens. E não deixam de pensar, com as brasas reacendidas em seus corações, que aqueles domingos é que eram domingos...

Paulo Mendes Campos tem sua própria Receita de domingo. Diz o poeta que, na véspera, convém “deixar a janela do quarto bem aberta” para “precisar o momento em que o dia e a treva fazem um composto que depressa se precipita”. Despertar e ver da janela “a mocidade do universo”, sentindo a brisa que “agita docemente as grinaldas” e embala uma “gaivota madrugadora”. Depois, “morrer de novo, devagar, penetrando, como um mergulhador suicida, a matéria do sono”.

Ao levantar-se de vez, o café e os jornais devem já estar prontos, numa espécie de milagre doméstico. Da cozinha, saborear a “dissonância alegre de instrumentos de percussão” que fazem as panelas, as frigideiras e os copos, ensaiando “a química e a ternura do almoço mais farto”. De fundo, “um rádio muito alto deve celebrar o indizível acontecimento de mais um domingo”. E só então reparar que o vizinho arranjou um canário belga.

“Todos os domingos são claros e festivos”, inclusive os de Fla-Flu. Deve-se brincar de luta com o filho e “receber dele um soco que nos deixe orgulhosos de sua força física”. Chatear a esposa, que reclamará daquela bagunça em pleno domingo, e levar a família para a praia, sob a “barraca mais velha e desmilinguida de toda a redondeza”. Lá, comprar para as crianças tudo que a medicina desaconselha. E quando a mulher resolver voltar com os filhos, ficar-se por conta própria mais um pouco, “fechar os olhos, torrar ao sol até que a pele adquira uma sensibilidade própria, à espera que os insetos da terra nos despertem do sono”.

A caminho de casa, é aconselhável cruzar com um amigo que não se via há muito e com ele perder o maior tempo possível, tomando chope ou vinho branco. Somente “à última hora desistir de ir ver pessoalmente o Flamengo x Fluminense”. Apelar, então, para a tevê do amigo. “Recusar sinceramente o uísque que este nos oferece”, dizer bobagens e voltar para casa.

Em casa de novo, conversar com a família, sossegar os filhos, abrir um livro e “sentir que a noite desceu”. Se bater a solidão, vencê-la. Se for saudade, abrigá-la. Se for poesia, possuí-la. Se alguém bater à porta, “recebê-lo com simplicidade e alegria”, mas se for o corvo agourento “arranhando o caixilho da janela”, gritar-lhe nevermore.

Assim, a noite pesada se assenta no domingo. À luz da lâmpada, “o livro deve dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo deveria ser composto de domingos. Então, nascer de nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos”.