Série Carnaval - integrantes de escolas de samba, Rio de Janeiro-RJ, década de 1980. Foto de Maureen Bisilliat/ Acervo Instituto Moreira Salles.
“O Carnaval morreu, viva a Quaresma!”, anunciou Machado de Assis, em 1877. Desnecessário esclarecer que o cronista se referia apenas ao desfecho dos três dias da festa, e não a um definitivo esticamento de canelas purpurinadas do Carnaval, já que a folia segue majestosa e colorida. Naquela época, tendo atingido a sua maioridade há pouco tempo, o Carnaval ainda não era isso tudo e precisava provar o seu valor para muitos. Machado mesmo, que sempre elogiou a festa pelo riso universal e inextinguível que promove entre o povo, achou a daquele ano meio chocha.
Não sabemos o que pode ter motivado esse diagnóstico desanimado – talvez um cortejo já cansado tenha passado em sua rua, talvez uma marchinha destrambelhada tenha grudado em sua cabeça. Ou, talvez, estivesse só puxando assunto com os leitores que gostavam de papagaiar aquele discurso de que tudo vai mal. Fato é que Machado se perguntou como aquele “jovem de 1854”, data em que se instituiu o Carnaval de rua no Rio de Janeiro, que nascera “tão cheio de vida, tão lépido, tão brilhante”, perigava morrer alguns anos depois, “sem necrológio, nem acompanhamento”. O Carnaval nasceu forte, “rechonchudo, travesso, um pouco respondão, mas gracioso”, e agora agonizava “triste, entre uma bisnaga e um princês, ao som de uma charamela de folha de flandres, descorado, estafado, desenganado”, com “um nariz de palmo e meio e os olhos mais profundos do que as convicções de um eleitor”. Pobrezinho.
Se essa moléstia seria fatal ou se teriam “o gosto de o ver ainda restabelecido”, só o próximo ano poderia dizer – estava tudo nas mãos de 1878. “Se aparecer tão amarelo, como desta vez, é não contar com ele por coisa nenhuma e tratar de substituí-lo”, sugeriu. Se o Carnaval seguinte foi digno de constar nos livros de história, não sabemos – mas, pelo visto, deu conta do recado. Agradecemos aos valorosos e anônimos foliões de 1878 por terem garantido a sobrevivência da maior festa popular do mundo.
Umas boas décadas depois, em 1916, João do Rio papeava com um distinto senhor de 75 anos, “teso, bem vestido, correto, possuidor de doze netos e cinco bisnetos”, cheio de bons conselhos e dono de uma conversa “sempre cheia de alegria e mocidade”, quando passou na rua um “zé-pereira” – espécie de bagunça em grupo improvisada, com bumbo e outros instrumentos, mais ou menos como um avô dos bloquinhos atuais.
Por conversar com um idoso, o cronista tinha certeza de que aquela algazarra seria a premissa perfeita para uma série de reclamações e implicâncias. Para estimular os protestos, jogou a isca: “Temos cada vez mais a dissolução da moral!”. Achou que com isso estaria abrindo a porteira da ranzinzice, mas o senhorzinho fez foi ficar indignado. “Quem lhe fala nisso?”, quis saber. Pelo contrário, considerava o Carnaval “o grande momento do amor no Rio”. Aquele grupo estabanado era, portanto, um difusor do mais bonito sentimento.
Mas e “os préstitos, as cortesãs, a promiscuidade, as meninas de pijama cantando versos pouco sérios, os lança-perfumes, a bacanal?”, retrucou o cronista. “Meu filho, quando se chega a uma certa idade, o resultado é tudo”, disse o conselheiro. Ele poderia garantir que as brincadeiras de 1916 eram tão livres quanto as de seu tempo de moço – provavelmente tinha pulado o folguedo aludido por Machado de Assis. Mas Carnaval não é só isso. “Trata-se de coisa mais séria" — é O momento do amor, o verdadeiro momento do amor. “A maioria das inclinações, dos namoros que terminam em casório, começam no Carnaval”, disse. Ele mesmo, há 58 anos, tinha conhecido sua esposa num balancê de rua. O mesmo aconteceu com sua filha e com nove de seus netos, todos, como ele, de peito aberto para as belezas do Carnaval.
“Mas, conselheiro, se é verdade o que vossa excelência diz”, insistiu o cronista, “era o caso de fazer uns quatro carnavais por ano…”. O senhor deve ter achado graça naquela inocência juvenil. “Não daria resultado, meu amigo”, respondeu com paciência. “O carnaval é uma embriaguez d’alegria”, e quem se embriaga uma vez por ano, pela falta de costume, fica contagiado, com a cabeça toda tomada. Mas quem se embriaga quatro, acaba vacinado, “raciocina na bebedeira” e perde o bonde do amor. Uma vez por ano é a medida certa para “o verão impetuoso do desejo, o momento do amor”. Sabia de tudo, o distinto conselheiro de João do Rio.
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Nota do Editor: Se você, assim como Carlos Drummond de Andrade, preferiu passar os dias de folia em casa, vendo o Carnaval de longe (ou nem isso), não deixe de ouvir a ótima gravação que o poeta Eucanaã Ferraz fez para a crônica “Ficar em casa”.