Fonte: Todas as crônicas: Aquarelas e outras crônicas (1859-1878). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2021, vol. 1, pp. 339-341. Publicada, originalmente, na Ilustração Brasileira, de 15/02/1877, sob o pseudônimo Manassés.

O Carnaval morreu, viva a Quaresma!

Quando digo que o Carnaval morreu apenas me refiro ao fato de haverem passado os seus três dias: não digo que o Carnaval espichasse a canela.

Se o dissesse, errava; o Carnaval não morreu; está apenas moribundo. Quem pensaria que esse jovem de 1854, tão cheio de vida, tão lépido, tão brilhante, havia de acabar 20 anos depois, como o visconde de Bragellone, e acabar sem necrológio, nem acompanhamento?

Veio do limão de cheiro e do polvilho; volta para o polvilho e o limão de cheiro. Quia pulvis est. Morre triste, entre uma bisnaga e um princês, ao som de uma charamela de folha de flandres, descorado, estafado, desenganado. Pobre rapaz! Era forte, quando nasceu, rechonchudo, travesso, um pouco respondão, mas gracioso. Assim viveu: assim parecia viver até a consumação dos séculos. Vai senão quando raia este ano de 77, e o mísero, que parecia vender saúde, aparece com um nariz de palmo e meio e os olhos mais profundos do que as convicções de um eleitor. Já é!

Esta moléstia será mortal, ou teremos o gosto de o ver ainda restabelecido? Só o saberemos em 78. Esse é o ano decisivo. Se aparecer tão amarelo, como desta vez, é não contar com ele por coisa nenhuma e tratar de substituí-lo.

II

Caso venha a dar-se essa hipótese, vejamos desde já o que nos deixará o defunto. Uma coisa. Aposto que não sabem o que é? Um problema filológico. 

Os futuros linguistas deste país, percorrendo os dicionários, igualmente futuros, lerão o termo bisnaga, com a definição própria: uma impertinência de água de cheiro (ou de outra), que esguichavam sobre o pescoço dos transeuntes em dias de Carnaval.

— Bom! dirão os linguistas. Temos notícia do que era a bisnaga. Mas por que esse nome? Donde vem ele? Quem o trouxe? Neste ponto dividir-se-ão os linguistas.

Uns dirão que a palavra é persa, outros sânscrita, outros groenlandesa. Não faltará quem a vá buscar na Turquia; alguns a acharão em Apúlio ou Salomão. Um dirá:

— Não, meus colegas, nada disso; a palavra é nossa e só nossa. É nada menos que uma corrução de charamela, mudado o cha em bis e o ramela em naga. 

Outro:

— Também não. Bisnaga, diz o dicionário de certo Morais, que existiu ali pelo século XIX, que é uma planta de um talo alto. Segue-se que bisnaga carnavalesca era a mesma bisnaga vegetal, cujo sumo, extremamente cheiroso, esguichava, quando a apertavam com o dedo.

Cada um dos linguistas escreverá uma memória em que provará, à força de erudição e raciocínio, que os seus colegas são pouco mais do que ruços pedreses. As academias celebrarão sessões noturnas para liquidar esse ponto máximo. Haverá prêmios, motes, apostas, duelos, etc.

E ninguém se lembrará de ti, bom e galhofeiro Gomes de Freitas, de que és o único autor da palavra, que aconselhavas a bisnaga, e a grande arnica, no tempo em que o esguicho apareceu, por cujo motivo lhe puseram o nome popularizado por ti.

Teve a bisnaga uma origem alegre, medicinal e filosófica. Isto é o que não hão de saber nem dizer os grandes sábios do futuro. Salvo, se certo número da Ilustração chegar até eles, em cujo caso lhes peço o favor de me mandarem a preta dos pastéis.

III

Falei há pouco do que há de substituir o Carnaval, se ele definitivamente expirar. Deve ser alguma coisa igualmente alegre: por exemplo, a Porta Otomana.

Vejam isto! Um ministro patriota leva a entreter toda a Europa à roda de uma mesa, a fazer cigarros das propostas diplomáticas, a dizer aos ministros estrangeiros que eles são excelentes sujeitos para uma partida de uíste ou qualquer outro recreio que não seja impor a sua ideia à Turquia; os ditos ministros estrangeiros desesperam, saem com um nariz de duas toesas, dando a Turquia a todos os diabos; vai senão quando o Jornal do Commercio publica um telegrama em que nos diz que o dito ministro turco, patriota, vencedor da Europa, foi destituído por conspirar contra o Estado!

Alá! Aquilo é governo ou Pera de Satanás? Inclino-me a crer que é simplesmente Pera. A porta tem outros muitos e vários alçapões, por onde sai ou mergulha, ora um sultão, ora um grão-vizir, de minuto a minuto ao som de um apito vingador. Todas as mutações são à vista. Eu, se na Turquia tivesse a infelicidade de fazer um dos primeiros papéis, metia claque na plateia para ser pateado. Creio que é o único recurso para voltar inteiro ao camarim.

IV

Sobre isto de voltar inteiro, dou meus parabéns aos deputados da Assembleia provincial, que puderam regressar intactos depois de 72 horas de discussão.

Um ponto obscuro em todos os artigos e explicações, notícias e comentários, é se o presidente da Assembleia foi o mesmo em todos os três dias e noites. Se foi, deve ter o mesmo privilégio daquele gigante da fábula que dormia com 50 olhos enquanto velava com os outros 50. Eram 50 ou mais? Não estou certo no ponto. Do que estou certo é que ele repartia os olhos, uns para dormir, outros para velar, como nós fazemos com os urbanos; velam estes enquanto caímos nos braços de Morfeu...

Pois é verdade; 72 horas de sessão. Esticando um pouco até a Páscoa. Cada um dos deputados, ao cabo dessa longa sessão, parecia um Epimênides, ao voltar à rua do Ouvidor; tudo tinha ar de novo, de desconhecido, de outro século.

Felizmente acabou.

V

Não acabarei eu sem transcrever nesta coluna um artiguinho, que li nos jornais de terça-feira:

Duas das mais grosseiras e desmoralizadas criaturas têm frequentado os bailes, causando os mais desagradáveis episódios aos que têm tido a infelicidade de aproximar-se-lhes.

Essas duas filhas de Eva anteontem achavam-se no Teatro D. Pedro II vestidas en femmes de la hâlle (filha da Madame Angot), e hoje também dizem que lá se acharão...

Seria bom que o empresário tivesse algum fiscal encarregado de vigiá-las, para evitar incidentes tais como se deram no domingo passado.

Ó isca! Ó tempos! Ó costumes!

machado-de-assis