Série Japão, 1987. Foto de Maureen Bisiliat/ Acervo Instituto Moreira Salles.
O mar, quando quebra na praia, é bonito. Mas às vezes, virado e de ressaca, é também cruel. Ergue-se num rompante violento e vai engolindo tudo que a humanidade construiu. Em 20 de abril de 1963, o Rio de Janeiro sofreu uma dessas bordoadas intempestivas de água e sal. Uma pessoa morreu e as ondas foram lamber as paredes do Copacabana Palace. Prédios foram invadidos, barcos naufragaram na Baía de Guanabara, o jardim do Museu de Arte Moderna ficou submerso e a pista de pouso do Aeroporto Santos Dumont alagou. A ressaca foi tão brava que reverberou até Niterói, engolindo a orla de Icaraí.
O mar, na rua, foi molhar também a coluna de Carlos Drummond de Andrade no jornal, no dia seguinte. “O mar agiu em estado de fúria gratuita, aterrorizando, ferindo, destruindo a esmo”, comentou o cronista, que viu na maré alta certo orgulho de ferocidade, como se o mar se gabasse de seu feito caudaloso, de sua “ressaca digna da era nuclear”.
As pessoas, “medrosos e fascinados bichos noturnos”, corriam para ver o espetáculo – trágico, mas de uma imponência fascinante. “Aos altos edifícios da praia, o mar opunha outros, feitos e desfeitos num instante, e sua arquitetura vencia em capricho os estilos antigos e os modernos.” As casas de espuma marítima desabavam “com fragor e ironia em frente às habitações apavoradas do homem”, e seus despojos líquidos seguiam adiante para inundar lojas, galpões e garagens.
Os automóveis eram expulsos das vagas e, “como baratas em pânico”, giravam nas calçadas de rodas para cima. Brincadeiras “de humor grosso” do mar, que também se divertia dando um caldo em namorados – sentados em bancos de pedra para observar a marulhada, o mar logo lhes destinou uma onda especial. O banco foi arrancado para nunca mais e os dois reapareceram logo adiante, “cobertos de areia e ridículo”.
O mar é “uma força bela em si, e que atinge a máxima terribilidade em sua beleza”. Como tudo da natureza, não dá maiores explicações. E a humanidade fica assim, sem saber de onde veio nem a que será que se destina, pequenina diante do mundo. Mas o homem é um bicho teimoso, “e providencia bombas de sucção, sacos de areia, serviços de socorro, improvisa na madrugada a luta contra o mar” e consegue resistir ao colosso. Até a próxima ira netunina, pelo menos.
Mesmo quando o mar está calmo, a força da correnteza, que tudo quer puxar para dentro, não dá trégua. Alguns gostam de desafiá-la, como O nadador que Carlinhos Oliveira observa à distância. “Quem é o nadador louro, de espáduas douradas, que nada como se marchasse?”, quer saber o cronista. Com as mãos pesadas que cavam o oceano, como que arrancando pedaços de água, ele nada quando faz sol, nada quando chove, e “ganha uma estrada ao mar com braçadas lentas e brutais”.
Que “verdade extrai dessas braçadas não cronometradas”? Que campeonato é esse no qual se mete todos os dias, sempre para perder? Seu “perfil helênico” é moldado pelo contorno da água, seu corpo é dourado, “com penugens de pêssego”, e os músculos “de aço exausto”. Ele nada na praia deserta, “debaixo da tempestade ou quando a hóstia solar se consagra a uma divindade pagã”. Ao meio-dia, se despede do mar e veste a calça cáqui, as alpargatas e a camiseta. É hora de abdicar do posto de herói matinal para ser funcionário público.
Ele desponta sempre de bonde, despe-se na areia e mergulha. “Meio minuto de morte transcorre; e então sua cabeça loura quebra a crosta verde” e olha pra trás: está longe da areia, da repartição, das paixões “e das palavras vãs que se dizem em terra firme”. Será que briga com o mar para esquecer alguém? Livre naqueles instantes, “ele se põe a lutar contra a água, que morde o seu ombro e negaceia”, que “resiste ao seu progresso, lava o seu rosto e queima os seus olhos”. Ali, na trêmula linha azul do horizonte, não há cidade nem felicidade. Há apenas uma imensa camada de água profunda, “mais aconchegante e mais dócil do que o ventre materno”.
Solitário, o nadador “nada sobre monstros jamais vistos pelo homem”. Mas tudo que o mar não engole é repelido de volta para a areia, e assim, de onda em onda, ele retorna. Exausto, “embora sinta em sua alma a força de um cavalo”, o nadador contempla o mar “e avalia a extensão da sua derrota cotidiana”. Eles são dois amigos que se odeiam, numa hostilidade sadia. Por algumas horas, o homem afoga os seus fantasmas e o oceano se diverte com aquela pequeneza à deriva. Amanhã, como sempre, retomará a guerra. Mas, agora, veste a calça cáqui, as alpargatas, a camiseta “e vai chapinhando na areia, na direção do ponto do bonde”.
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Nota do editor: O mineiro Hélio Pellegrino nada tem a ver com o mar, mas aproveitamos o gancho para prestar uma pequena homenagem aos cem anos de seu nascimento, comemorados no início de janeiro. “Um homem chamado Hélio Pellegrino”, crônica de Clarice Lispector, traz um belo perfil do poeta e psicanalista, que compõe, junto com os amigos Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, o grupo dos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”.