A festa do tempo

Colheita ao amanhecer, Chácara Arara, Londrina-PR, 1944. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Pois é, esse aí foi mais um ano que acabou. Passou agorinha para nunca mais. Não sei se você é dos que tendem ao hábito e passam a virada sempre do mesmo modo, no mesmo lugar e com as mesmas pessoas, mas Rubem Braga, toda a vida angustiado por aquele “segundo que vem depois da meia-noite”, pisava no ano novo de qualquer jeito, com qualquer pé – já passara a noite sozinho, “andando como um tonto na rua”, “afundado no canto de um bar ruidoso”, tentando telefonar em vão, dormindo, com dor de dente, ou “nos braços de algum amor eterno”, que depois dobrou a esquina e partiu, sem a mais leve mágoa nos cotovelos, como o ano que se foi.

Os anos e os braços passam, mas fica sempre “essa emoção confusa de um instante”, de quando o planeta dá uma volta em torno do Sol. Para Braga, nenhuma celebração emociona tanto quanto o ano-novo – ou ano-bom, como se dizia antigamente, com um pouco mais de beleza. Vai ver trocamos o “bom” pelo “novo” por uma ideia comercial, pode ser. De todo modo, o aniversário da Terra é a própria Festa do Tempo, e comemoramos todos como se “estivéssemos fazendo anos juntos”, pois o tempo é relativo, mas nem sempre.

“Vinde”, diz o cronista de mão estendida, “vamos tocar janeiro, vamos por fevereiro e março e abril e maio, e tudo que vier; durante o ano a gente o esquece, e se esquece; dá menos mal”. Vamos em busca da aragem que nos aguarda dobrando a esquina. Em busca da sombra e da água fresca espiritual, por mais implacável que nos tenha sido o sol dos desertos, por mais envolto que se esteja pelo mormaço das charnecas da existência. “Coragem”, pois “a Terra está rodando; vosso mal terá cura”.

Para o ano que chega, Braga sugere um exercício para ser feito diante do espelho: durante aquele exame solitário de consciência em que sopesamos erros e acertos para medir os quilos da nossa alma, procure ver a si mesmo como se fosse alguém a quem quisesse ridicularizar. Pense nos seus próprios pecados com algum carinho. “Quem sabe a virtude de que você mais se envaidece é menos uma virtude do que medo de polícia, ou, mais comumente, do ridículo?”

O crime, já sabemos, não compensa. Mas e a virtude, afinal, compensará? “Espero que sim, mas talvez só no outro mundo”, palpita o cronista. Neste nosso, não sabe dizer. “Conheço pessoas virtuosas que me parecem tão azedas, tão infelizes, tão entediadas, tão sem graça com a própria virtude” que dá vontade de sugerir uma escorregada: “Peque pelo menos uma vezinha, sim? É bom para relaxar”. Algumas máculas saem fácil, só com água e sabão.

Mas ai de quem busca a felicidade só em pecados e sujeiras. A não ser que a pessoa tenha “mesmo muita vocação para essas coisas”, o que é raríssimo, o desgosto é inevitável. No geral, “a maior parte dos sujos tem uma inveja secreta e imensa dos honrados, dos limpos”, e sofrem com isso. Tanto quanto os “que vivem além do gabarito da própria virtude”. Na sabedoria da balança, Rubem Braga deixa seus Votos para o Ano-Novo: “muitas virtudes e boas ações e alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos e, principalmente, bem-sucedidos”.

Mal conhecemos o recém-nascido ano e Carlos Drummond de Andrade já aparece com recomendações, logo para O primeiro dia, apesar do protesto imaginário de alguns leitores que, afundados em ressacas e ressalvas, prefeririam vê-lo em igual condição, e não trabalhando no jornal. “Pensei em ti, imaginei-te de ressaca e desemparado no hall do Ano-Novo, precisando de conselho e camaradagem, e sacrifiquei minha celebração para te assistir nesta hora”, explicou-se o poeta altruísta.

“Toma o teu sal de frutas, amigo, e começa o batente hoje mesmo, se queres estar em dia com os novos tempos”, recomenda. Limpa a tua casa, ou, se ela for grande, apenas o escritório. Se fizer calor, basta limpar a prateleira do banheiro. O importante é o gesto simbólico da limpeza. “Sê moderado, porém não abstêmio, cauto, porém não medroso, paciente, porém não mártir, delicado, porém não baboso, alegre, porém não palhaço.” À amizade, reserva “o largo território que lhe é próprio”. Trata mulheres e crianças com carinho, “defendendo-te, porém, de arranhões de uma e fraldas mal postas de outras”. Cultiva teu gosto ou tua mania, “desde que não perturbem o próximo”. Na medida do possível, isto é, “daquilo que está em seu poder”, sê feliz. Fujamos de aborrecimentos e amemos “os ócios tranquilos, num lugar de sombra ou de sol”, o máximo possível, neste ano que agora chega.

E como se não bastasse a crônica de Drummond, não custa lembrar de alguns versos de seu poema “Reinauguração”, escrito entre o gasto dezembro e o florido janeiro: “Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos/ a um sol diferente que nos acorda para os/ descobrimentos”. Pois somos todos, afinal, “uma fraternidade, um território, um país/ que começa outra vez no canto do galo de primeiro de janeiro/ e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade”.