O cronista poetinha

Vinicius de Moraes, década de 1950/ Acervo VM.

“De repente, não mais que de repente”, Vinicius de Moraes se junta à mesa do Portal da Crônica Brasileira. O poetinha, como era carinhosamente chamado, é o décimo oitavo cronista da casa e chega com uma deliciosa amostra de 15 textos. Sua vida, intensa como poucas, está resumida numa cronologia preparada por Katya de Moraes. E um belo texto de apresentação, assinado pelo músico e pesquisador Bruno Cosentino, dá conta de aprofundar algumas questões peculiares desse grande personagem da cultura brasileira – o único, segundo Carlos Drummond de Andrade, a realmente levar uma vida de poeta, totalmente sob o signo da paixão.

Vinicius de Moraes foi múltiplo – do contrário, seria apenas Vinicio de Moral, costumava brincar Stanislaw Ponte Preta. Apesar de ser conhecido por sua obra poética e musical, tendo assinado quase 600 composições, Vinicius deixou também uma prosa fina, compilada em dois títulos: Para viver um grande amor, de 1962, e Para uma menina com uma flor, de 1966. Misturando versos e crônicas, os volumes reúnem parte de sua produção na imprensa, onde desovou também críticas de cinema e de música popular, sobretudo entre as décadas de 1940 e 1970. De uns anos para cá, a prosa de Vinicius tem sido merecedora de reedições caprichadas e de novos trabalhos, como Crônicas inéditas (Companhia das Letras, 2023), alentada antologia de novidades feita por Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho, com mais de 170 textos nunca antes editados.

A verdade é que Vinicius já estava no Portal muito antes de sua chegada. Pela quantidade de histórias inusitadas que protagonizava, o poeta aparece com frequência como personagem de crônicas alheias. Nada mais natural para quem deixava a porta de casa aberta (literalmente, muitas vezes) e estendia a mão a quem quisesse se aproximar. Uma saborosa seleção dessas ocorrências foi feita por Humberto Werneck em 2020, quando rememoramos os 40 anos da “desobjetivação” de Vinicius, como ele próprio costumava dizer quando alguém morria.

Como cronista, Vinicius dizia ser apenas um poeta disfarçado de prosador. Sorte a nossa, já que o olhar de poeta nunca é limitador para a crônica. Pelo contrário, amplia a vista desse observador urbano, sensível o suficiente para descobrir uma lasca de diamante onde só se vê cacos de vidro, para enxergar lirismo onde nem se imaginaria haver poesia – caso de “Operários em construção”, em que o cronista assiste a trabalhadores de uma obra se equilibrando numa estreita prancha móvel, à guisa de elevador, enquanto fazem “poses escultóricas”, “indiferentes à sucção do abismo aberto em espirais de morte sob seus pés”.

As memórias de criança compõem um núcleo importante de sua produção e revelam seu lado melancólico. Em “O dia do meu pai”, Vinicius relembra a figura paterna, com quem não trocou mais de dez palavras durante toda a vida. “Nos entendíamos e amávamos mudamente”, certos de que “se começássemos a falar, cairíamos os dois em pranto, tão grandes eram em nós os motivos para chorar”, escreveu. Em “Menino de ilha”, disponível também em áudio na voz de Bruno Cosentino, o cronista remonta o ambiente em que passava as férias, na Ilha do Governador, onde a natureza era a única medida das coisas: “A aragem entrava-me pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festa nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber ainda que aquilo era uma forma de contar o tempo”. Há, ainda, “A casa materna”, onde o jovem Vinicius teve o primeiro contato com “algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso”.

Naturalmente, os amigos também são assunto recorrente. “001” é uma distinta declaração de amor a Otto Lara Resende, “mais habituado a dar que receber”, e “sempre esticando uma mãozinha disfarçada para nos ajudar a carregar a nossa cruz”. “Antônio Maria” traz um perfil carinhoso do amigo pernambucano, a quem Vinicius só tratava de “o meu Maria”. E em “O conde e o passarinho” há uma anedota bem-humorada envolvendo Rubem Braga e um malandro vendedor de canários.

“Escrever prosa é uma arte ingrata”, disse em “O exercício da crônica”. A prosa, no caso, se referia à matéria fiada do cotidiano que o cronista usa para tecer suas colunas. Às vezes, rendido pela ausência de inspiração, tudo o que lhe restava era sentar-se diante da máquina, acender um cigarro, olhar pela janela “e buscar fundo em sua imaginação um fato qualquer” para, com artimanhas peculiares dos escribas que têm hora marcada para entregar seu texto, injetar-lhe algum sangue novo. Mas às vezes a crônica simplesmente não baixa. Aí, o jeito é escrever sobre a própria falta de assunto – um movimento clássico do gênero, mas que nem todo cronista consegue fazer com a leveza e a maestria de Vinicius de Moraes, agora à disposição dos leitores do nosso Portal. Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça.