Campanha publicitária da agência Itapetininga para conjunto Papoula da Celite - flores, Brasil, 04/02/1964. Foto de Chico Albuquerque/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Durante quase toda sua trajetória pela imprensa, Rubem Braga anunciou a chegada das flores no fim de cada setembro. O nosso arauto da primavera saudava a estação à sua maneira, às vezes com a alegria discreta de quem redescobre a beleza da vida, às vezes contagiado pelo rompante da natureza, também ele desabrochando um pouco.
Mas nem todos os cronistas se emocionavam com os meses floridos. Em 1946, o sergipano Genolino Amado maldisse a estação em uma coluna meio azeda na revista O Cruzeiro. Para ele, o período não passava de uma sala de espera para o verão. Seria tolice, portanto, saudá-lo. Braga ficou chateado: “A coisa me atinge, pois tenho cantado a primavera todo ano, assim como as demais estações, conforme é uso e costume das pessoas que escrevem o ano inteiro”, respondeu. De tanto escrever sobre a primavera, o cronista acabou “acreditando nela” – mais que isso, “sentindo-a”.
Senti-la, sim, pois perceber a primavera no Brasil é “um exercício fino”. Diferente de outros lugares, por aqui “não há neves que se derretam nem campos que se cubram de flores instantâneas”. Não é difícil que passe batido aos olhos distraídos. Mas “quem vive com o nariz no céu” percebe bem quando Vem a primavera, talvez “porque o sol ande um pouco para o sul”, talvez porque “certas árvores deitem flores”, os “dias comecem a florescer mais cedo”, as “primeiras cigarras comecem a cantar”.
Comovido pelo equinócio, Rubem Braga se sentia “intimamente confortável” com a justiça da primavera em repartir bem a sombra e a luz de seus dias neste mundo tão desigual. A esperança, como as sementes, brota impassível do escuro da terra para reger “a marcha misteriosa das coisas”. E aí são cajus e acácias a equilibrar a nefasta melancolia da humanidade.
Em 1955, Braga chefiava o Escritório Comercial do Brasil no Chile. Apesar de passar os dias “telefonando, providenciando, funcionando”, não deixou de escrever suas crônicas para o Correio da Manhã – nem de dar notícias da primavera. A daquele ano invadiu o país dançando e sorrindo “por todos os campos, entre a cordilheira e o mar”. Atento às árvores carregadas, à brisa espalhando pólens e painas, o cronista saiu do gabinete para receber aquele “verde alegre, vivo, de folhas novas” com o peito aberto.
Diante de um campo de trigo “brilhando ao sol com mil flores amarelas”, Braga perguntou ao lavrador como se chamavam as flores que ali nasciam. O trabalhador se admirou com tamanha ignorância e respondeu: yuyo. Num “ataque de inteligência”, o brasileiro traduziu na hora a Descoberta: joio. “É o joio, eterno irmão do trigo, irmão pobre e ruim que é preciso separar do irmão rico e bom” – mas não agora. No começo de outubro, “nosso irmão joio é que estende o tapete dourado para que a primavera venha bailar ao sol, na República do Chile”.
Seu mais bonito Recado de primavera, veja se concorda, é o de 1980, escrito em homenagem ao amigo Vinicius de Moraes, morto havia dois meses. Aqui no Portal, a crônica está disponível também em áudio, na bonita interpretação do cantor e compositor Bruno Cosentino. “Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a primavera chegou”, começa. Era a primeira, desde 1913, sem a participação do poeta. “Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias” – a moda de décadas atrás tinha retornado, o que certamente seria do agrado do amigo.
“O mar anda virado”, informa, e da sua varanda era possível ver “uma vaga de espuma galgar o costão sul da ilha das Palmas” – tudo isso, diz, são “violências primaveris”. Outro sinal da chegada da primavera, esse muito mais humilde, também se via de sua casa: um tico-tico, “com uma folhinha seca de capim no bico”, começou a construir seu ninho. E um chupim folgado, parasita de ninho alheio, já estava fiscalizando a obra. Essa história é tão antiga “que parece que só podia acontecer lá no fundo da roça, talvez no tempo do Império”. Mas estava acontecendo em Ipanema, na cobertura de Rubem Braga, durante a primavera de 1980.
As muitas “moitas de azaleias e manacás em flor” trazem a promessa da vida, e “em cada mocinha loira” há uma esperança de Vera Fischer. “O tempo vai passando, poeta”, arremata o cronista. “Chega a primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.”