Fonte: Um pé de milho, 3 ed., Sabiá, 1970, pp. 127-131.

Escreve com violência no Cruzeiro meu amigo Genolino Amado contra a primavera, e o menos que diz dela é que não há. Por que plantar árvores e fazer versos e dizer às crianças e mesmo aos marmanjos: atenção, eis que vem a primavera — se ela não vem? Ela seria apenas um compasso para a espera do Verão: e é uma tolice comemorar um compasso.

A coisa me atinge, pois tenho cantado a primavera todo ano, assim como as demais estações, conforme é uso e costume das pessoas que escrevem o ano inteiro, e obedecem às tradições deste ofício. E à força de escrever sobre a primavera acabei acreditando nela e, quem sabe?, sentindo-a. O que em outros países é fácil e barato, em nossa capital do Brasil é um exercício fino. O homem distraído não vê a primavera, pois não há neves que se derretam nem campos que se cubram de flores instantâneas. Mas quem vive com o nariz no céu bem que a sente; talvez porque o sol ande um pouco para o sul, talvez porque as laranjas dos caminhões fiquem piores e apareçam as jabuticabas, e certas árvores deitem flores, e os peixes nos deixem comer suas ovas, e os dias comecem a florescer mais cedo, e as primeiras cigarras comecem a cantar. Não sei nada dessas coisas, mas que importa se me comove o equinócio e me sinto intimamente confortável porque neste mundo desigual vejo bem repartida a sombra e a luz do dia 23, e sempre há esperança de que falte menos água, e a marcha misteriosa das coisas nos prometa cajus para chupar com cachaça e as primeiras acácias breve comecem a chover ouro sobre a calçada onde passeio minha nefasta melancolia? Só o lavrador sabe as coisas; só o caçador e o pescador, seus irmãos mais velhos, e jamais nós, cujo calendário é o vencimento dos títulos, os invencíveis títulos, que se vencem ao sol e à chuva com a mesma triste pressa, a mesma cruel monotonia. Eu e Genolino não plantamos legumes na terra, mas apenas cultivamos estas tristes couves da literatura que são as crônicas; e as dele, muito embora sejam couves-flores, também são, como estas, feitas de palavras vãs e não da força da terra e da água do céu. Ai de nós!

Voltarei a contar, em louvor da primavera que vem no fim do mês, um conto que uma vez li e não sei sequer o nome do autor. Lembro que o mordomo se curva em ângulo reto e anuncia à senhora condessa:

— Com a permissão de v. exa., a primavera chegou.

— Diga-lhe que seja bem-vinda, e pode permanecer três meses em minhas terras.

Então vem o primeiro domingo de primavera. E havia um velho mendigo que tinha uma perna de pau. E todo domingo ele ficava à porta da igreja; e havia uma rica velhinha que todo domingo, à entrada da missa, dava ao mendigo uma grande moeda de cobre. Naquele domingo, entretanto, por ser o primeiro da primavera, lhe deu uma grande moeda de ouro. O mendigo sorriu e lhe ofereceu uma rosa.

— Que rosa tão bela, mendigo. Onde a colheu? 

— Nasceu em minha perna de pau, senhora.

Não sei se isso comoverá Genolino; é possível, se ele já amou entre as rosas de outubro na praça da Liberdade de Belo Horizonte ou na praça Marechal Deodoro, em S. Paulo. Mas lhe peço que me ajude a fazer propaganda da primavera. Assim, quem sabe, talvez ela exista. Tenho feito previsões erradas sobre essa gentil estação, confesso. Há dois anos, em setembro, escrevia:

“Nas filas de mantimentos todos farão roda e se porão a cantar. E haverá luta nos ônibus: pois a primavera é tão gentil que pela sua influência todos se assanharão de gentileza e todos hão de querer ser um dos oito em pé:

— Mas por favor. Mas, faço questão! Oh, senhorita. Oh! cavalheiro! Quero ficar em pé, como sempre vivi! De pé, pela Democracia! De pé, pela primavera! Irei me sacudindo assim, com o coração acima do estômago, e a cabeça ainda que tonta, acima do coração!”.

Previ também que os açougueiros e padeiros fariam fila à porta dos edifícios, e muitas outras coisas, terminando assim. “Iremos para a amplidão dos mares, na volta tomaremos grandes, imortais chuveiradas. Pois na primavera teremos água, pois na primavera nascerão fontes líricas dentro do metal das torneiras, e a vida será uma pantomima aquática, de nossas banheiras saltarão peixes-voadores que se porão a cantar como verdadeiros gaturamos”.

Sim, confesso que errei. Mas por que não acreditar na primavera? É grátis, e para acreditar não é preciso fazer fila. Afinal, a verdade é que desde logo a minha varanda tem flores, e ali atrás do Ministério do Trabalho, entre o horrível Ministério da Fazenda e a lagoa com estátua de Rio Branco, perto de teu apartamento, ó Genolino, as grandes árvores deitam flores rubras. Acreditemos. E aquele dentre vós que tiver a sua amada, cante com Heitor dos Prazeres:

“Meu amor por ti são flores 

Tudo flores naturais...”

E quem não tiver amada, espere, que ela está vindo. Está na esquina, talvez na esquina da praia, talvez na esquina do mês de outubro; bela, sorrindo, e coroada de flores ela vem...

rubem-braga