
Humberto Werneck fotografado por Luiza Sigulem.
1. Você fez parte da criação do Portal e para cá escreveu durante cerca de três anos. Qual a contribuição que o projeto dá para o público e a literatura brasileira?
A contribuição do Portal é preciosa. Com uns poucos cliques você chega a milhares de crônicas, das quais a imensa maioria não está em livro. Em muitos casos, a reprodução de recortes de jornais e revistas nos permite topar com curiosidades inesperadas: correções feitas à mão pelo autor, num esforço, diria o Otto Lara Resende, para “despiorar” o que às vezes parecia irretocável. A fartura de textos e a facilidade para desfrutá-los trabalham pela crônica, que aos poucos vai deixando de ser vista como o patinho feio da literatura.
2. Você usou essa imagem do patinho feio da literatura em seu livro Viagem no país da crônica, publicado pela Tinta-da-China Brasil, uma coletânea dos seus textos aqui no Portal. Apesar do histórico desinteresse da universidade, há sempre algum livro relacionado à crônica sendo publicado. A que você atribui isso?
A simpatia do leitor brasileiro pela crônica vai de fato endireitando o nariz torcido de quem subestima a crônica como gênero literário. Como é possível torcer o nariz para aquilo que, produzido no sufoco de prazos e tamanhos apertados, parece condenado a não sobreviver ao dia, mas que em muitos casos segue vivo e sem prazo de validade, capaz de falar a leitores que ainda nem sequer nasceram?
3. E por que você acha que a crônica é um gênero tão amado pelo brasileiro?
A crônica, em seus bons momentos, tem uma leveza e um encanto bem ao gosto dos nossos leitores. Tem graça (não confundir com comicidade, pelo amor de Deus), esse atributo tão especial e tão difícil de botar em palavras, capaz de estabelecer uma espécie de cumplicidade entre autor e leitor.
4. Ao fazer a seleção dos seus textos para o livro, notou assuntos recorrentes sobre os quais escreveram nossos cronistas? Dá para dizer que há preferências temáticas, ou mesmo obsessões, na crônica brasileira?
Sim, há preferências temáticas, felizmente. Tem cronista mais à vontade na contação de histórias, caso de Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Clarice nos leva aos meandros da alma, Rubem Braga volta e meia se põe a navegar num lirismo jamais enjoativo. À margem das preferências temáticas, nossos cronistas, uns mais, outros menos, trabalharam todos na agonia do prazo curto para desovar o texto. Não espanta que alguns deles tenham tomado como assunto a falta de assunto. Rubem Braga, Drummond e Vinicius não foram os únicos, e o leitor sempre saiu ganhando.
5. Você conheceu e conviveu com alguns dos escritores do Portal. Pode contar alguma história ou curiosidade sobre eles?
Tive contatos, mais ou menos superficiais, com alguns dos 20 cronistas que hoje fazem parte do Portal da Crônica Brasileira, em especial com Fernando Sabino e Otto Lara Resende. Clarice Lispector, como contei em crônica (“Meu traumatismo ucraniano”), me deu um contravapor logo na primeira pergunta da entrevista que fiz com ela, a segunda na minha vida de repórter, aos 23 anos. De Rubem Braga, homem de poucas palavras, ouvi uma recomendação quando lhe contei que pensava escrever uma biografia de Jayme Ovalle, projeto que ainda assim levei adiante. “Mexe com isso não”, resmungou o Braga. “Ovalle só tem quatro histórias, sendo que três o Fernando Sabino já contou e a quarta é mentira...”
6. Muitos cronistas não têm, ainda, a obra devidamente editada. Quem você acha merecedor de uma organização definitiva, de uma publicação mais cuidadosa?
Há talvez mais de um cronista merecedor desse belo esforço, e penso de saída em José Carlos Oliveira, estrela no Jornal do Brasil por longos anos, mas hoje insuficientemente conhecido. Em vida ele nos deu ótimas coletâneas, como Os olhos dourados do ódio, A revolução das bonecas e O pavão desiludido, romance composto de crônicas publicadas em sua coluna no JB. Outros livros foram organizados após a sua morte, mas sua memória e todos nós teremos a ganhar quando se fizer com a extensa obra de José Carlos Oliveira algo como o que fez Guilherme Tauil em Vento vadio, seleta fina e alentada das crônicas de Antônio Maria.
7. E, para encerrar, você trabalha há anos em uma biografia de Carlos Drummond de Andrade. Acha que a crônica ocupa um lugar importante em sua obra?
Com o perdão da obviedade, na obra de Drummond nada se equipara à poesia. Não significa que sua prosa não tenha enormes qualidades. Ele está, lembra Antonio Houaiss, entre os nossos maiores contistas e cronistas. Escrever crônica foi o recurso que encontrou para complementar uma aposentadoria magra de funcionário público. Durante 30 anos – 15 no Correio da Manhã e outros tantos no Jornal do Brasil –, nosso maior poeta cronicou três vezes por semana. Toda manhã, garimpava inspiração na leitura de dois jornais. Gostava de imaginar alguém sorrindo ao ler sua conversa amena no café da manhã do dia seguinte. A satisfação seria multiplicada se soubesse que sua prosa matinal segue acendendo sorrisos, e não apenas na mesa do café.
* Entrevista conduzida por Guilherme Tauil.