Fonte: O jornal de Antônio Maria, Saga, 1968, pp. 101-102.

A música distante de um exercício de piano. Por trás, a infância. A música reminiscente do exercício de piano, que tocava, na mão direita: "Dó-Mi-Sol-Mi-Ré-Mi-Ré-Dó". Na mão direita de todas as crianças, estudando piano, a mesma música. Na mão direita, eu tinha uma roseira. 

Era o mês de junho. Chovia, de tarde, na rua da Aurora. O Capibaribe estava vazio, com as vísceras à mostra. A lama. Ouviam-se os siris, batendo as patas, em luta corporal. 

As mulheres passavam, para o médico. Todas elas pálidas, honestas, resignadas, como não tinham o que fazer, de tarde, iam ao médico. Logo depois davam seis horas. Ouvia-se o sino da Conceição dos Militares. Depois, de dentro das casas, pelas venezianas, vinha a voz do speaker da PRA-8: 

“Ave-Maria! Rainha pura e ditosa dos homens pecadores, santa radiosa dos céus"... Ia por aí. As mulheres já estavam em casa, "de seu" contando que estiveram no médico e que, no dia seguinte, teriam de voltar, para novo exame. A expressão "de seu", ou "de meu", era muito comum, no Recife. Queria dizer pouca coisa. Estar "de seu" é estar consigo mesmo. Então, servia-se o jantar. Carne assada com arroz. Carne de sol com farofa. Carne assada no Recife, era lombo. E farofa era feita na água quente.

Depois do jantar, nas casas sem jardim, botavam-se cadeiras na calçada. Cadeiras de vime. A voz do sorveteiro, lá longe, triste, mendiga, musical. Cada vez mais perto. Até chegar a arriar a sorveteira na calçada. O perfume inesquecível dos sorvetes de mangaba! Cada sorvete, um tostão. Cada tostão, um desprendimento. 

Rua da União. Defronte, nas janelas dos sobrados, as quartinhas e os copos de barro, refrescando. Os copos de barro tinham tampa e cada um era marcado com o nome do dono. 

A gente não sabe por que escreve essas coisas, que não eram importantes na época, nem o são, hoje, em lembrança. Mas a gente escreve, irreprimivelmente, para aliviar. 

A noite mesmo, a noite de dormir, começa com um fundo silêncio, interrompido, longe, pelos bondes da Pernambuco Tramways. Eram todos amarelos. Depois, a dita noite agregava-se ao homem e se tornava imperceptível. 

A música perdida do exercício de piano. Se conseguíssemos descerrá-la, veríamos, com arrependimento, a infância e, nela, o Capibaribe descamando com a lama toda de fora. Todos nós, os meninos, sentíamos uma constante necessidade de abandono.

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