Fonte: Pernoite, Martins Fontes, 1989, pp. 9-11.
Itapuã é um lugar da Bahia, feito de coqueiros, areia, moça morena e saudade. Dali, saem os pescadores de curimã, afoitos guerreiros do mar, heróis e mártires dos temporais. Ali, celebra-se uma das mais belas festas. Iemanjá, senhora de todos os praieiros e de todos os marítimos. A poesia do mar, da praia e dos coqueiros quebra-se, de repente, ao choque com a miséria de sua população descalça — gente sisuda e triste — marcada de doenças, subnutrição e desilusões. Nos tempos eleitorais, os políticos vão para lá, instalam postos de saúde, iluminação, retrato, fazem discursos e sacam contra o futuro, contando histórias de dinheiro, saúde e felicidade. Eleitos, saem de mansinho e os ingênuos praieiros que conquistem, na incerta generosidade do mar, comida, remédio e dignidade. Fartos da música, dos discursos e das palavras sem verdade, os pescadores se apegam a todas as lendas e crendices do mar, o caminho mais fácil que eles encontram até Deus. É por isso que, nas praias da Bahia, vivem as rezas, os cultos, as celebrações mais ricas e numerosas do folclore praieiro.
Estando na Bahia, quando é noite de lua, ninguém resiste ao passeio de Itapuã, à areia branca e macia, à água de coco nas portas das casas dos pescadores, aos violões que ainda servem às serenatas, de cordas puxadas por dedos que são sentimentos e ainda creem na força das cantigas. Aos olhos da moça, o luar está sempre carregado de lembranças e o passado embora à curta distância, amolece-lhe a alma, abrindo o seu coração para o amor, que passa à sua janela, na voz, no passo vagaroso, na poderosa humildade de todos os seresteiros. Essa antiga simplicidade de Itapuã começou a morrer, com a chegada das primeiras estradas de barro batido e foi inteiramente superada pelo asfalto do caminho novo de Santo Amaro de Ipitanga. Os terrenos ganharam valorização e o pescador teve que recuar para sua casa da praia, para que o endinheirado doutor da cidade pudesse construir seu palacete de veraneio, quase sempre desenhado pela esposa. Dos hábitos antigos do pescador, perdidas as noitadas de violão e aguardente, a posse da praia, as andanças pela beira-mar — desses hábitos antigos, só ficou o da miséria. Seu casario foi recuando, até que o mar se perdesse de vista e fosse seu só para pescar e morrer.
Estas vidas e estas histórias, se bem que pareçam um exagero literário, são o resumo de todas as canções de Caymmi. A praia de sua meninice, hoje de suas lembranças, era só: coqueiro, areia, morena e saudade. Todo mundo a conhece assim como a canção ensinou e vai chorar de decepção o turista gaúcho, quando lá chegar e vir a beira do mar se copacabanizando. Perguntará, certamente, por aquela morena em cujo colo o vento jogava uma flor. Perguntará pelo vento, que ondula as águas e faz cantiga nas folhas, no alto do coqueiral. Perguntará por Caymmi, Deraldo, Nonô, Zezinho e Fernando Pedreira — violeiros da praia, namoradores das moças que envelheceram. Será difícil encontrá-los e impossível reuni-los outra vez. Um morreu, o outro se perdeu, quase todos já nem sabem mais como era a “primeira de dó”.
A Bahia acaba de fazer um bonito. Em Itapuã, onde está situada a Igreja Matriz de Itapuã, no subdistrito do mesmo nome, será a praça Dorival Caymmi. A terra do mais poeta de todos os nossos cantores populares vai pagar, assim, uma dívida antiga. Cheguei a pensar que um dia ia morrer sem ver o nome do meu querido e fraternal amigo nas velhas paredes de sua terra. Seria uma injustiça, uma ingratidão, porque esse Dorival Caymmi de cabelos brancos cansou de escrever a palavra Bahia em todos os muros do mundo. Mas, não. Um povo como é o da Bahia, dono de uma doçura como não há nenhum outro — povo cantador de santos, deuses e heróis — não deixaria de cantar e louvar o seu poeta. A esta hora, já deve existir a Praça Dorival Caymmi. Quero saber o nome de uma pessoa que more lá, para escrever uma carta de parabéns e ter o prazer de fazer um envelope assim:
Gaudêncio de Lima
Praça Dorival Caymmi, 54
Salvador — Bahia.