Fonte: Benditas sejam as moças: as crônicas de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2002, pp.77-78. Publicada, originalmente, no jornal Última Hora, de 4/08/1959.
Cá estive, pedindo a Deus não te encontrar e que não chegasses, enquanto rabisco este bilhete. Pessoalmente, quase nunca te pude pedir perdão, porque tu pensas que isto é, apenas, uma humildade, que humildade é um apoucamento, e assumes, cada vez, uma soberba desdenhosa, que não te fica bem, que me enfada e me apiada de ti. Sempre que te amansei e te conduzi um pouco à realidade foi com descaso ― e só eu sei quanto me custou fingi-lo. Odeio a mentira, e a pior delas é a que esconde um sentimento bonito, para expandir, em defesa própria, uma atitude banal, de gestos e palavras. Quando e em quem será o dia que poderei valer pelos meus sentimentos mais legítimos? Assim por escrito, é-me fácil chegar a teu coração, porque não estou presente... e tu usas o coração por fora da blusa, não sentirás necessidade de escondê-lo.
Cá estive, para que estes recados desdissessem alguma crueldade que te fiz, quando tentaste encontrar em mim uma bondade maior que a dos homens. Esqueceste de que eu era, simplesmente, um homem; fragilmente, um homem; fortemente, um homem. E que o homem ― o melhor deles ― é feito apenas de dor e orgulho. Tu não quiseste que eu partilhasse do teu sofrimento. Tu me vieste exibi-lo, cruelmente, para saber até que ponto eu resistiria ao desespero. E eu era um homem, como os outros, feito de dor e de orgulho. Agora, preciso dizer-te quanto me sinto responsável por ti, muito mais que se o fosse perante teu senhorio, tua Société Anonyme du Gaz, tua Casa da Banha, teu algum argent de poche. Mas perante mim mesmo, que te sei a mais indefensável das pessoas. E que isto, em todas as horas, me traz inquietação e cuidados, numa sufocante angústia paternal. Que saber disto te faça companhia, quando todos e tudo te cercarem. Que ao menos isto te afague a fronte, quando todos e tudo te humilharem. Que ao menos isto te agasalhe o corpo, quando todos e tudo te ultrajarem. Que ao menos isto seja poesia, quando a dor te fizer chorar de noite, porque de te ferir já se fartaram, todos e tudo, e te deixaram só.
Muito mais que te pudesse amar, eu te sofro. Muito mais do que te queira perto, eu te quero feliz. Se isto te parecer um arremedo de poesia é porque isto é verdade, e em toda verdade há muito de poesia, e só há poesia na verdade, de todos e de tudo.