Fonte: Jornal do Brasil, 10/04/1963. Publicada no livro Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp. 207-208.

Minha pobreza é quase sempre cômica. Ontem, por exemplo, a cozinheira veio avisar que era preciso comprar carne. Não sei se são todas, mas há sempre uma alegria no olhar da minha empregada quando a carne se acaba. Uma vitória, nos olhos dela, quando vem dizer que a carne se acabou. A carne, o feijão, o arroz, seja o que for.

Meu dinheiro, ontem, era zero, e como não tenho conta no açougue, tive que fazer demorado discurso explicando a necessidade que o homem tem de comer macarrões. Por que ela estaca com as pernas inchadas? Porque só comia carne, carne, carne. O organismo pede mais talharim! Tudo isto porque a padaria vende talharim e me deixa pagar de 30 em 30 dias. 

O médico é contra os meus cigarros e me proibiu passar de oito. Os oito permitidos, com mais oito que fumo escondido, são 16. Dá para viver. Ou para morrer, sei lá. Então, um cardiocolega me aconselhou a fumar o cachimbo. Diz que a gente bota o cachimbo na boca, fica escrevendo, o cachimbo apaga, a gente acende, ele apaga... Fica-se nisso e o dia passa, com apenas uma carga de bom fumo inglês.

Fui ver um cachimbo. Custa 40 mil cruzeiros um cachimbo Dunhill. Recuei. Como em basquetebol, pedi tempo.  Ao chegar em casa, recebi telefonema de um amigo, dizendo que ia a Londres. Veio aquela coragem e lhe pedi que me trouxesse um Dunhill de até 15 dólares. Fiz as contas, com entusiasmo, e achei que podia. Agora o homem está para chegar, e cadê os 15 dólares? Claro, pode esperar, mas e minha palavra de pobre soberbo? Não sei por que esse amigo vai voltar já, se Londres está tão linda, envolta na bruma deste fim de inverno! E se ficasse uns dias em Paris? Um homem cheio de lutas (coisas de jornal, de televisão, de rádio, de política), um homem assim, sempre que pudesse, devia espairecer em Paris. A primavera desponta nas mansardas da rua François-Iᵉʳ. Os gatos saem preguiçosos de janelas minúsculas e vão divagar nos telhados. E meu amigo poderia participar de tudo isso, fumando meu cachimbo...

As desconjunturas da pobreza incomodam um pouco, mas são engraçadas. Minha vida perderia os encantos se minha geladeira estivesse sempre cheia de carne e se, sobre esta mesa, houvesse cinco ou seis cachimbos. Pobreza execranda é aquela de Braz de Pina, que a gente vê quando vai para Petrópolis. Os homens e os urubus, disputando o lixo, de igual para igual. Os homens empurrando os urubus, os urubus empurrando os homens, na mais absoluta e triste igualdade de direitos. Lembrei-me que, por ali, passa diariamente o deputado Danilo Nunes, a caminho de Campo Grande. Deve olhar o espetáculo e resmungar, entre dentes:

— Esses comunistas...

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