Fonte: Os sabiás da crônica, Autêntica, 2021, pp. 277-278.
Faz muito tempo, um dia nós saímos rua abaixo. De calção bem curtinho, toalha no pescoço, íamos para a praia, como fazíamos todas as tardes, jogar futebol na areia.
Aos poucos iam chegando todos; uns pulavam o paredão e vinham bater bola, outros ficavam lá por cima mesmo, de conversa, esperando os retardatários. Quando não faltava mais ninguém, começava a distribuição de camisas.
Aproximei-me de um grupo, já metido no seu “uniforme”, quando alguém segurou-me pelo braço para apresentar o novo jogador. Era um garoto magro, moreno, de cabelos muito lisos. Veio com um andar gingante, apertou-me a mão com um sorriso e, logo em seguida, o jogo começava.
Nada de pontapés sem bola, nem trancos, nem nada. Tudo correndo normal, a gente gritando os nomes uns dos outros, pedindo ou mandando passes, alegres e divertidos, que não havia nada mais alegre e divertido do que jogar futebol na areia. Naqueles tempos mudava-se de clube mas as amizades ficavam. Por isso, companheiros e adversários, éramos amigos de todas as horas, de todos os futebóis passados e futuros.
Mas naquele dia foi diferente. Sem ninguém compreender por que, o jogador novo, de repente, saiu dando murros no ar, esbravejando cheio de ódio, a dizer que não era palhaço, que quebrava a cara do primeiro que lhe fizesse um foul.
Quando o jogo acabou, na rua acima, de volta para casa, alguém me disse, comentando a briga: – “Aquele camarada é maluco!”.
Ainda não era. Era, isso sim, um grande jogador de futebol. Cada verão que entrava encontrava-o a jogar melhor, sempre perfeito e sempre a reclamar aos berros e palavrões. Mas já ninguém ligava; aquilo era normal nele.
Os anos começaram a pesar nas nossas costas, dificultando-nos o fôlego e a corrida atrás da bola. Um a um todos foram entregando as suas camisas suadas para nunca mais. Só ele ficou, magro, alto, de cabelos lisos e andar gingante, a gritar com os companheiros nos campos de verdade. Primeiro campeão amador, depois um craque profissional que aos poucos ia ganhando cartaz.
Embora o melhor jogador do time, seu clube só foi campeão no dia em que ele saiu. Brigava com todo o mundo e, em vez de ajudar, inibia os companheiros. Mas isso não impediu que tomasse o lugar do grande Leônidas no selecionado, como também não impediu que se tornasse um ídolo da torcida. Os jornais mentiam a seu respeito, inventavam histórias, diziam que ele, fora do campo, era um gentleman.
Mas não era. Nem dentro nem fora do campo ele era gentleman. Apenas um homem de nervos esbandalhados, vítima de um irrecuperável desequilíbrio nervoso. Das arquibancadas era difícil notar e os jornais puseram em moda a palavra temperamental, para definir o seu mau gênio.
Uma noite, estávamos jantando no Bar Alemão, quando contou a novidade: – “Vou esta semana para a Argentina”.
E foi mesmo, levando com ele um séquito de cronistas e locutores esportivos. Tal era a sua fama que o jogo de estreia foi irradiado para todo o Brasil. Fez os dois gols que garantiram a vitória ao seu clube, ficou mais famoso ainda, mas passados uns 15 dias, estava incompatibilizado com atletas e dirigentes.
Voltou para o Brasil, foi campeão carioca e brasileiro e o maior criador de casos da época. Tentou a Colômbia, ganhou rios de dinheiro e deixou tudo lá, porque brigou, foi multado e resolveu fugir para casa.
Sua última oportunidade, teve-a numa modesta partida de futebol. Num pequeno campo de subúrbio, quase chorava pedindo uma bola que ninguém lhe passava, com medo de que se transformasse em ídolo, novamente. E, afinal, talvez tivessem razão; estavam defendendo o sossego de muitos, contra a carreira de um, apenas.
Quando entrou no vestiário teve uma violenta crise de nervos; o que se repetiria mais tarde com maior frequência, obrigando a família a interná-lo num sanatório, para uma estação de repouso.
Seu irmão me contou – há tempos – que os médicos tinham esperanças de salvá-lo da loucura, e essas esperanças tornaram-se maiores no dia em que veio ao Rio, de visita.
Agora estou sabendo que foi internado, talvez para sempre. E fico a imaginar que, infelizmente, o diagnóstico certo foi aquele, feito há 20 anos atrás, quando subíamos a rua, depois do futebol na areia:
– Aquele camarada é maluco – disseram.