Fonte: O mais estranho dos países, Companhia das Letras, 2012, pp. 259-266. Publicada, originalmente,  na Manchete, de 31/05/1975.

Há 30 anos, no apartamento de Fernando Sabino, em Copacabana, esperávamos Pablo Neruda com o leitão assado que o poeta queria jantar. O primeiro convidado a chegar foi Di Cavalcanti. Gordo e lépido, acomodou-se como pôde numa cadeira rebuscada que se dizia funcional, pegou o copo, passou o lenço na testa e disse a sorrir: “Aconteceu hoje uma coisa extraordinária”. A coisa era esta: na véspera, ele marcara encontro com uma bonita coroa argentina que acabara de paquerar numa festinha ocasional. Mal conhecendo o Rio, a mulher não sabia localizar bem em que ponto da praia se encontraria no dia seguinte. Mas deu uma dica: iria com um maiô blanco por delante e colorado por detrás. E lá foi o pintor, do Posto 3 ao 4, olhando as mulheres por detrás e por delante, à procura da banhista portenha. Um episódio banal, mas, vivido e contado por Di Cavalcanti, era de fato uma coisa extraordinária, que nos fazia derramar lágrimas de riso. Pouco depois encontrei-me novamente com ele e ouvi para início de conversa: “Me aconteceu hoje uma coisa extraordinária”. Achava-se o pintor deitado na areia de Copacabana quando notou a presença de Benedito Valadares.

Cumprimentaram-se. “Então eu me levantei – contou-me o artista – e caí no mar, que estava muito forte. Atravessei a arrebentação e continuei nadando. De repente senti medo. Só então percebi que estava bancando o maior cretino deste mundo, querendo fazer bonito para o Valadares. Veja só!”

Nestas três décadas, sempre que nos vemos, meu secreto prazer tem sido verificar que a talentosa imaginação do pintor sempre o poupa do tédio: todas as coisas que lhe acontecem são extraordinárias.

Rubem Braga caracterizou isso muito bem, quando, há alguns anos, um professor de direito romano, da cidade de Santos, fez uma viagem num disco voador na companhia dos marcianos. Disse o Braga: “Eu acredito; só que o professor não soube contar direito sua aventura; o Di contando uma viagem na barca de Niterói é cem vezes mais interessante”.

Di Cavalcanti, de fato, é redondo: está equidistante de todos os acontecimentos; é intemporal; dá intimidade a tudo e a todos, capaz de passar uma tarde percorrendo a alma de uma cartomante do Irajá ou papeando com Jean-Paul Sartre.

Dou de exemplo este último por ter estado presente a um encontro de ambos aqui no Rio (mais Simone de Beauvoir e Jorge Amado) e o filósofo teve dois momentos de entusiasmo: o primeiro, na churrascaria, quando chamou a nossa linguiça de saucisse extraordinaire; o segundo quando se viu à frente do grande mural que o pintor terminava para um edifício de Brasília. Di é a rua, da qual somente se retira para o silêncio da pintura; mas carrega inelutavelmente a rua para as telas.

Quem nasceu na rua do Riachuelo e se criou na travessa do Barata, em São Cristóvão, foge a seu destino caso não acabe fixando residência definitiva na rua do Catete. É onde mora, com muito orgulho de seu endereço, Emiliano Di Cavalcanti. O saudoso Stanislaw Ponte Preta foi uma vez visitá-lo e perguntou por que escolhera aquele ponto tumultuado. Di respondeu: “Porque, ao chegar lá na rua, a qualquer hora, conheço todas as pessoas. Sei, pelas caras, o que elas fazem, o que elas pensam, o que elas riem, o que elas sofrem”.

O romancista Georges Bernanos disse que escrevia em cafés e bares para não perder a visão, a dimensão, do rosto humano. Di talvez não leve o cavalete para a rua porque iria perturbar o trânsito; ou porque, como sempre repete, a arte é seu silêncio; é a concentração desse homem disperso, o quarto escuro no qual se aclaram e tomam cores suas visões.

Ele próprio abre-me a porta. Quase tão malvestido quanto eu. É a primeira vez que o vejo depois de uma cirurgia e de uma virose hepática. O abatimento físico desaparece por encanto logo depois que ele começa a falar. Estava no momento a ler um livro de memórias de Oswald de Andrade, reeditado há pouco. Vai falando, não como quem se lembra, mas como quem vive ainda o passado:

O Oswald era um sujeito estranho. Neste livro de memórias ele narra fatos antigos de São Paulo como se soubesse certas coisas que só aprendeu muito mais tarde. Oswald foi muito católico. O pai dele quis que eu fizesse primeira comunhão. É muito estranho como o Oswald atraía desgraças: as mulheres dele acabavam tragicamente. Estive com ele no último dia: levantou-se e quis ir comigo ao jardim, começando a chorar desesperadamente. Fui-me embora, percebendo que minha presença lhe fazia mal. A uma hora da manhã soube por Pagu que ele morrera. É engraçado: o Mário de Andrade, quando o conheci, era muito diferente. Foi o Oswald que o influenciou. Aliás, o próprio Mário reconhecia que, sem ter lido Serafim Ponte Grande, não teria escrito Macunaíma. No velório do Oswald estavam várias de suas mulheres. Uma disse que, se o Menotti del Picchia discursasse, iria meter a mão nele. Tive então de falar algumas bobagens no velório da Biblioteca. Mas, no cemitério, o Menotti fez um discurso enorme.

Assim prossegue Di Cavalcanti: sem planos, misturando os tempos, revivendo o vivido. “Quer um uisquezinho?” Com a maior cara de pau, prefiro tomar um suco de tomate. Vamos ver o apartamento. Não há quadros do morador nas paredes. Poucos quadros de outros artistas, em geral primitivos brasileiros, pelos quais se encanta.

A paixão do pintor não são as telas, mas os livros. Livros de dar inveja ao mais rico e requintado bibliófilo, religiosamente encadernados e arrumados em preciosos armários, coleções completas de autores prediletos, revistas raras arrumadas com um carinho de solteirona por seus guardados.

Tenho mais de 30 livros sobre Picasso. Você já leu Georges Bataille? Ah, não pode deixar de ler! É estupendo! Vou mandar um livro dele pra você, está com minha filha. Aquele escritor Ford Madox Ford era inglês ou americano? Conheci ele em Paris. O Joyce eu vi mas não conheci. Já viu esta revista dedicada aos bistrôs da França? Olhe só que beleza! Pena que brasileiro não tenha imaginação para fazer botecos assim. Veja essas caipiras francesas, que maravilha, que lindas! Don'Ana, telefona pra casa de Marina Montini; se ela não vier logo, a gente bota o almoço na mesa. Tenho duas empregadas portuguesas, a melhor gente do mundo. Uma é agora a favor do Spínola, mas a cozinheira é ainda salazarista doente. Aqueles dragões ali em cima daquela mesinha vieram do Vietnã.

Entra Elizabeth, loura e sorridente, filha adotiva do pintor; entra em seguida Marina Montini, morena e sorridente, amiga e modelo do pintor. A briga é logo formada: Di acha que Marina parece um andrógino com seu novo penteado. Marina protesta (uma vez um cronista disse que ela apareceu numa festa com um penteado que lembrava um pincel de barba) e a brincadeira dura pelo menos meia hora, o Di envolvido nela com uma sinceridade de dar gosto.

Almoço tá na mesa. Lá pelo meio, o dono da casa pergunta se pode tomar um pouquinho de vinho. Não! – diz a filha – você sabe muito bem que lhe faz mal. Di fica sério: “Que me importa se faz mal? Estou cansado de viver, agora eu quero é morrer”. A apelação dramática dura alguns minutos, mas não surte efeito: Não, não pode!

Aí Di Cavalcanti dá uma gargalhada: “Eu sei que ainda não posso, mas não quero morrer coisa nenhuma: estou chorando porque quem não chora não mama”.

Chegaste brincando à idade canônica – escreveu a respeito do pintor o poeta Schmidt. E outro poeta, Vinicius, conta que, quando Di andava pelos 50 anos, uma senhora deprimida resolveu visitá-lo de repente; entrou no apartamento e viu o artista dentro da banheira, espadanando água por todos os lados, euforicamente como um bebê sadio. A crise depressiva da visitante entrou logo em fase de regressão. É este homem, inesperado, caloroso, fantasioso, agudo, capaz de chorar de rir, capaz de chorar pra valer, considerado por muitos o maior pintor do Brasil, considerado por todos um dos maiores pintores modernos, amigo de milhares de pessoas de todas as raças de todas as partes do mundo.

Uma vez eu estava num bar da cidade e fui chamado ao telefone. Uma voz em espanhol: “Pablo, quem fala aqui é Mário Moreno, Cantinflas. Estou aqui no Copacabana com Di Cavalcanti, venha imediatamente". O embalo mexicano era perfeito, por isso mesmo comecei a fazer minhas brincadeiras do lado de cá, certo de que o Cantinflas era o psiquiatra Hélio Pellegrino, mestre em trotes do gênero. Mas não era o doutor, era mesmo Cantinflas. Quando Di entra no circuito, a realidade é sempre mágica.

Imagino que conversas não teriam, ele e Erik Satie, quando em Paris o então jovem pintor acompanhava o compositor até uma gare suburbana: “Que maravilhoso tipo humano era Satie! Ele ia tomar o trenzinho para isolar-se no seu quarto de pobre, onde nenhum amigo penetrou enquanto ele viveu”. Que maravilhoso tipo humano é Di Cavalcanti, que ama acima de tudo a poesia, e disse uma vez a Vinicius: "Eu sou poeta, teu irmão, irmão do compadre Neruda, irmão de Rimbaud e de Nicolás Guillén, do Manuel Bandeira e do Ribeiro Couto, de García Lorca, de Verlaine, do meu querido Rafael Alberti”. Irmão ainda de Pixinguinha, que foi um de seus maiores amigos, e irmão de sua alma irmã, o fabuloso Jayme Ovalle, que numa madrugada parisiense desandou a chorar quando Di lhe pediu não sei quantos francos emprestados: “Não faça isso, Di, pelo amor de sua mãezinha, não se aproveite da beleza da aurora pra pedir dinheiro. Não seja nunca um gigolô da aurora!”.

“Vivi numa fogueira e meu sangue derramou-se em sensações, transbordando como um rio vulcânico, afogando todas as ilusões.”

Di, testa teatral; pintor de mulheres; fiel a todas as mulatas; sobrinho de José do Patrocínio; criado a fazer pipi nas pernas de poetas (entre eles, Olavo Bilac) e militares (o pai era oficial do exército); Di, que aprendeu a tocar piano em criança, com o major Rocha, autor de “Vem cá, mulata”; Di, que, ao entrar para a Escola de Direito, era um ingênuo libertino; que, na adolescência, sentiu a grandeza impoluta de uma prostituta, polaca, que tinha no quarto, caprichosamente emoldurada, uma gravura de d. Pedro II; Di, que, na atual convalescença, fica de olhos brilhantes e me pergunta se não quero ir agora dar uma volta de carro em São Cristóvão; Di, que venceu um concurso de tango em Buenos Aires; Di, que se lembra até hoje com ternura do dia, em São Cristóvão, em que um senhor (com o apelido tonitruante de Tibúrcio) meteu o guarda-chuva no Fulgêncio droguista, quando discutiam no bonde São Januário e o último afirmara ser a Traviata uma ópera sem importância; Di, que chorava de amor no jardim da quinta da Boa Vista, e que hoje me pergunta se conheço bem a quinta, caso contrário, ele vai lá comigo; Di, que pretende fazer um Museu da Paisagem Carioca, que dançou maxixe nos Tenentes, nos Democráticos, no Bola Preta; que marcou dormentes na Mogiana e frequentava os cabarés de Ribeirão Preto; acha o Carnaval carioca a coisa mais influente em sua formação artística, mais ainda que as festas de igreja; que por uns tempos andou católico, tornou-se socialista, mas permanece deslumbrado pelo mundo místico; Di, de coração dividido entre o Rio e São Paulo; que procurou o cônsul da França para ver se ia para as trincheiras na Primeira Grande Guerra; Di, boêmio manso, paciente, sem pressa; Di, que já foi magro e triste, de dar pena em Oswald de Andrade; Di, expressão máxima da alma anárquica do brasileiro; que tem tara pelo romanesco carioca, mas que teve a visão do Brasil depois das lições de miséria dos romances nordestinos; que se viu seduzido por Graça Aranha (“como uma linda cantora de ópera pode eletrizar uma plateia de paspalhões”), mas não viu no mestre da Estética da vida um homem de profundidade; Di, que teve a ideia da Semana de Arte Moderna, mas afirma até hoje que “éramos todos uns atordoados, mistificávamos a nós mesmos e a todo mundo, numa orgia de destruição inconseqüente”; Di, que se fez amigo de Cendrars, Cocteau, Léon-Paul Fargue, Léger, e que até hoje fala com unção de Miguel de Unamuno; que, depois de conhecer Tiziano, Michelangelo, Da Vinci, caiu numa pobreza moral infinita e não queria mais ser pintor; Di, que se diz marcado pelo seu conhecimento de Picasso e pelas comemorações fúnebres da morte de Lênin; Di, que põe acima de todos os pratos o peixe à brasileira; Di, irmão de todos que dele se aproximam; Di, painel do Brasil.

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