Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp. 327-328. Publicada, originalmente, no jornal Diário Carioca, de 15/02/1953.

Os telefones de Di Cavalcanti fazem parte da minha vida, em grau de importância quase igual ao da digitalina. São feitos, muitas vezes por dia, em vários estados de espírito, versando temas como a revolução sentimental, a idem social, a necessidade de solidão, a necessidade de dependência, a imprescindibilidade da mulher, o desespero, a dor e a humildade.

São telefonemas informais, isto é, sem um só “alô”. Começam continuando uma conversa que nunca houve. Assim: 

“Bem, nisso chegou uma amiga minha, de nome Fran-ci-ne (pronuncia silabando os nomes próprios femininos), cuja avó foi amante de Zola...”

Sua única pontuação é a vírgula, e as intermitências são curtas, de um assunto para o outro. Um tratado sobre os telefones de Di Cavalcanti não poderia ser escrito por apenas um dos seus amigos, mas por cinco ou seis a quem Di telefona, em horas, dias e humores os mais contraditórios.

O telefonema clássico de Di Cavalcanti começa com um “olha aqui”. Cinco ou seis pessoas o recebem, vez ou outra:

“Olha aqui, está em minha casa uma pessoa que adora você e você adora, ela disse que quer ver você e depois morrer, chama-se Eu-ni-ce e Vi-lhe-na, prima de uma pessoa que você adora, hein...”

No “hein” dos finais de frase, Di respira.

Anteontem, domingo, Di me telefonou três vezes e segue o que foi dito, cada vez:

Às 9h:40: “Bem, como você sabe, a natureza é uma coisa estúpida e eu detesto quem me diz que Campos do Jordão é lindo, hein (respirou)... Quando eu vejo a natureza, minha vontade é destruí-la”.

Às 10h10: “A flor, a rosa, todo mundo diz que rosa é bonita, bonitos são os olhos do homem que veem a rosa, hein (respirou)... Sonhei com você, nós dois em Paris muito inquietos, mas você precisa morar na rua do Catete, por aqui a gente sai de casa e entra no cinema Azteca”.

Às 11h:40: “Olha aqui, Marie Claude foi ao meu apartamento e disse que ia escrever um livro, mas não seria um livro como Le Bagage des Sables, porque ela acha que não há velhos, hein (respirou)... Marie Claude usava meias pretas até o baixo ventre, como se diz no norte”.

É assim, e disto sabem mais cinco ou seis pessoas que recebem os telefonemas de Emiliano Di Cavalcanti. Cinco ou seis privilegiados incitáveis, porque citá-los seria acordar os ciúmes de 50 ou 60 “falsos donos” do pintor.

Di e eu. Um dia, com a devida licença de Hemingway, autor de The Old Man and the Sea, escreverei um livro chamado Di e eu. Não comecei ainda porque há nove anos vimos discutindo, em trevas, qual dos dois é “the sea”.

Di e eu, na opinião de Di, somos os dois únicos rebelados brasileiros. Em minha opinião, somos, ao contrário, os dois grandes conformados, face ao desfrute reinante. Gritamos, é verdade, mas pelo telefone, um com o outro. Nossos gritos só são ouvidos, de raro em raro, quando a censura policial se lembra de nós. Mas isto é uma vez na vida, outra na morte. 

antonio-maria