A gente conhece quando é Deus que manda as coisas e quando é o diabo.
Tinham bebido e, quando se deram conta, iam de automóvel, estrada afora, sem saber para onde. Deram num bar, de mesas e cadeiras cedidas por uma cervejaria. O mar era perto e cheirava a sargaços. Mas, o mar não tinha nenhuma importância. Veio um garçom sem paletó. Pediram-lhe whisky, gelo e que os deixasse o mais em paz possível. Na vitrola de fichas, só havia tango argentino. Mandaram que tocassem todos, a partir do El dia en que me quieras. Cada um ofereceu a sua mão direita e as duas se pegaram. Ficaram bebendo de esquerda. E começaram a se olhar, com toda a significação que os olhos humanos contêm. Um minuto depois, cada um sentiu o seu primeiro ciúme, desejou que o outro morresse e, no minuto seguinte, quando fizeram as pazes, bateram os copos e continuaram bebendo, de esquerda. Uma bebida ruim que estava sendo ingerida sem o menor constrangimento, porque, quando perguntaram ao garçom se era legítima, este respondeu, sinceramente "Não senhor". Veio um cachorro gordo, com os olhos ainda grudados do sono que dormira. Olhou, não viu futuro, foi-se embora. Veio um gato empoeirado, pulou na mesa, pisou em cima das dadas, roçou a cauda, tanto no rosto de um, como no rosto do outro e, por não haver peixe, nem lhe fazerem carinho, foi-se embora. Veio um bêbado e disse um palavrão. Como ninguém protestou, convidou para brigar. Como ninguém aceitou, foi-se embora. Veio um polícia e pediu os documentos. Mas, era tão compreensivo que, ao ver as quatro mãos, de fato, ocupadas, foi-se embora. Nessa altura, a vitrola já ia no Mano a mano e, cada um, sentindo o seu 25º ciúme da série retrospectiva, desejava que o outro morresse. Não se esbofeteavam, porque, de fato, as quatro mãos estavam ocupadas. E ficaram assim um ano e tanto. Um no outro, cada um mais longe de sua humanidade. Ambos sem a menor noção da dor comum. Até que uma quantidade imensa de cansaço os separou para sempre. Foi ótimo.