Fonte: Com vocês, Antônio Maria. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994, pp. 81-82.

Ouça a crônica de Antônio Maria na voz da pesquisadora Elizama Almeida.

PETRÓPOLIS, MARÇO. Deixo-me quieto, quase imóvel. É possível, então, entender mais o barulho da chuva sobre a palha. Na chuva, o poder evocativo dos sons. Sobre a pedra, sobre o barro, sobre o rio, sobre as folhas. A lembrança imprecisa de um momento da meninice. A quase certeza de que eu estava só, como agora e, como agora, não me sentia especialmente alegre. Mas em paz. A chuva é bela, na música e no formato. E, acima de tudo, porque é água. A água é bela.

Nenhuma emoção é mais forte que a de entrar no quarto da mulher que dorme. Sentir-lhe o cheiro e o calor, no ar do quarto. Tocar-lhe a pele poderosa. Nela, encontrar a intensificação completa. Depois, dormir como na morte, para despertar ao peso dos deveres aflitos a cumprir. Um mistério indecifrável de uma mulher a que se volta. Só se ama uma mulher quando lhe tememos a pele e o cheiro. Quando a ideia de sabê-la em outro amor nos torna capazes de matá-la ou perdoá-la. Matá-la e perdoá-la são duas coragens difíceis. Fica-se, geralmente...

Ama-se, angustiadamente, o vestido pendurado da amante ausente. E haverá mais verdade na companhia desse vestido (morto como um vestido) que adiante, nos braços de uma nova mulher.

Os sentimentos das nossas constantes paixões! Enlevo, carinho, generosidade, sacrifício. Infelizmente, por mais que se tenha feito para negá-lo, o verdadeiro amor é aquele que nos abrange e nos vence como um vício. Nunca se diga que o amor é fácil, antes de se vivê-lo como um vício.

O homem investe demais contra os seus gostos verdadeiros. Quando devia deixar-se ser, consentir a si mesmo, procurar-se mais e mais no fundo de suas tendências.

A carne não mente. Apesar da má companhia em que vive, ainda não chegou à perfeição desse erro. Vivamos antes das palavras. Ou em vez das palavras. Seremos livres e intensos.

Quantos séculos e quantos poetas deverão passar, para que se digam todas as verdades? Quando se assistirá a toda a intimidade de um nosso semelhante, sem que ele e nós nos sensibilizemos? Em que dia se será só, em companhia de outra pessoa? Só se saberá verdadeiramente de um homem depois de morto, quando o forem vestir.

A preguiça se parece muito com a humildade. Não quero nada além do não ter a cumprir em hora certa. Livre a hora futura... ainda que incerta. Que não me deem além de viver no Tempo sem pensar em aproveitá-lo em ambições, o minuto que passa sobre a rede onde estou deitado quase imóvel. Os bens chegarão ao acaso. O acaso é a verdadeira hora certa. A mulher virá para o amor. A poesia explicará o mistério. A música me desvendará durante algum tempo. Tudo que houver de ser legitimamente meu virá entre as horas que perco, enquanto durmo. Só me exalta a posse legítima e afim.

A água é bela e jovem. Ninguém a envelhecerá. Ninguém a prenderá para sempre.

antonio-maria