Canção compassada

 

Fonte: Benditas sejam as moças: as crônicas de Antônio Maria. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002, pp. 51-54. Publicada, originalmente, no jornal Última Hora, de 16/11/1959.

Marcaram encontro sem leve lembrar que a vida, por si, já é um encontro; que o Amor fez-nos todos, mandou-nos à Vida para, cedo ou tarde, haver o encontro. Portanto, o encontro, por que se marcar? E quem fez-nos todos? Foi Deus ou o Amor? Mas isso é detalhe e se acerta depois. O fato é que os dois marcaram o encontro que estava marcado. Seria num bairro distante de tudo. Distante, ainda mais, das limitações do senso comum, das proibições, dos zelos morais. Os zelos morais, Morais de Vinicius, na forma invertida, tirando-se o "de", Vinicius Morais.

De longe, ele a viu, sentiu uma coisa. O sangue esquentou, subiu-lhe na face e, como um aperto, de falta de ar, pesou-lhe, no peito, a pedra do medo. Alguém sabe disso: a pedra do medo? É coisa do amor e, certo, alguém sabe. Se alguém não souber, azar, nunca amou.

Sentaram-se, os dois, num banco de pedra. Fazia calor, no bairro e nos dois. Então, pôs-se a vê-la. Por fora, o vestido, de azul floreal. Mas, findo o vestido, saíam-lhe as pernas que, belas assim, não houve um só dia, na face da terra, no olhar de ninguém. Pensou em ficar, e continuar, a ver só as pernas, que muito já eram. Mas havia tanto ainda que olhar! Ergueu seu olhar. Foi vê-la no rosto – que imensa beleza! Pensou em ganhar, pensou em perder. Pensando em perder (antecipação), pensou em morrer. Porque se, um dia, ficasse sem ela, melhor lhe seria deixar de viver. (Perdão, estas rimas são tão casuais!) Reparem que olhos tão raros, na vida! Tal qual o vestido, de azul floreal, o branco dos olhos azul também era. Pensou poesia, fazer poesia, que não importava ser bela ou banal. Pensou indagar: são olhos ou mar? Podia ser mar porque cada um "tinhu'ilhazinha" castanha a boiar, no meio do azul dos olhos (ou mar). Não sei se ficou aqui explicado que os olhos da moça não eram azuis. Azul era o espaço que branco seria, se a moça em questão "foss'uma" qualquer. A parte central, chamada "ilhazinha", foi vista castanha. Ao sentir-se assim, anatomizada, a moça sorria. Que dentes, Antônio! Bonitos assim, só houve uma vez, em mil novecentos e cinquenta e três – em outra mocinha, que durou um mês, de março a abril de mil novecentos e cinquenta e três. Mas isto passou. Passou como o barco, passou como a dor, passou como a chuva, passou como a glória de Ramón Novarro. Agora existia, no bairro distante dos zelos morais, apenas a moça, no banco de pedra, vestida de azul, enquanto fazia calor-38, no bairro e nos dois. Por fora, a beleza. Por dentro, o silêncio. Que imenso mistério, o silêncio por dentro de todas as coisas! Que medo nos causa o silêncio que existe por dentro dos homens!

Os braços dourados do sol da manhã! O rosto vermelho, de encabulação, do susto feliz de estar sendo bela, de estar encantando o homem do encontro e, é claro, também, vermelho, também, do sol da manhã. Porque, de manhã, no banho de mar, ficara no sol.

Vestira maiô – pensou, ciumento, o homem que a via. Andara na praia, e todos que a viram pensaram pecados, que Deus, friamente, irá perdoar. Mas ele, jamais. Cresceu-lhe o ciúme. Lembrou-se do Braga, se ali estivesse, com os dedos no ombro da bela mocinha. Botando dragonas nos ombros dourados da bela mocinha. Dizendo coisinhas, no diminutivo. Que graça, Jesus, que pode encontrar alguém de bom senso no Capitão Braga? Que mau plumitivo! Morreu-se em ciúmes do cronista Braga, coitado, inocente, em sua Ipanema, pensando em Irene. Perdão, Capitão. Mas foste, Braguinha, naquele momento, a encarnação de todos os homens metidos a sebo, que há por aí.

Daí por diante, no peito do herói, a dor começou. Nasceu-lhe, na mente, cruel profecia: a moça bonita não seria sua. Olhou-se por dentro. Que horrível que era! Que gasto que estava de amores passados! Que marcas imensas de desilusões. Olhou-se por dentro, como debruçado na borda de um poço. Que morto que estava de amores passados! Olhou-se por fora. Um velho senhor de olhos cansados. Seus olhos mais velhos que o resto do corpo. Os dentes escuros, de tanto fumar. O rosto marcado de vincos enormes, de tanto aprender. As marcas das mãos! Por que cicatrizes, nas mãos de um poeta? Porque sua vida, em todas as horas da lida e da vida, foi sempre marcada de muitos perigos, de riscos de vida, de luta e de sangue, por causa das iras do álcool e do amor. Sentiu-se mais triste. Arrependimento, de tudo, lhe veio. De ser de onde era, de ser o que era e ver, no que era, que nunca, na vida, devia ter sido. Por que concordou em ir ao encontro? Porque não sabia, de si, nada então. Pensou que sabia por convencimento. Agora, aprendia, naquela menina, de azul floreal, que nunca devera marcar o encontro. Daí por diante, restava sofrer. Saiu pela rua, andando pesado, seu passo sem rumo que a nada levou. Semanas depois, achou sua casa. Abriu sua porta, entrou, foi chorar. Passou um menino, na rua, e gritou: "Já viram que coisa: um homem chorando?!" (ESTA ÚLTIMA FRASE É DESCOMPASSADA.) Foi bem feito que o menino dissesse o que disse, porque os homens gostam de mangar de menino que chora.

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