Fonte: Seja feliz e faça os outros felizes: as crõnicas de humor de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2005, pp. 39-41.
Eis o senhor Antônio Maria d'Albuquerque de Moraes (Zé Maria, para os íntimos), outra vez, cansado de trabalhar. De trabalhar, de ser pobre, mas, especialmente cansado de si mesmo, de sua burrice progressiva. Deita-se na cama, liga a refrigeração, o oxigênio e, com uma mão sobre o peito, procura os batimentos do seu, outrora, insensato coração. Dão para viver.
É aquele cansaço intimíssimo das sextas-feiras, quando começam os fins de semana. Aquela vontade (não sei se serei merecidamente compreendido) de ser um homem franzino, sardento, de óculos, vesgo, se possível, funcionário do IAPC. Aquela vontade de não saber nada e de sentir no ônibus (vesgo e de óculos) o imenso desejo de conhecer Buenos Aires. Ah, como queria ter vontade de conhecer Buenos Aires. Melhor ainda, de tramar dentro de mim minha transferência para o IAPC de São Paulo. E dizer, suspiroso, a alguns íntimos:
– O dinheiro está em São Paulo, seu compadre!
O que atrapalhou minha vida foi ter visto e feito muita coisa, desde pequenininho.
E respiro, fundamente, o oxigênio. Fundamente.
Na revista, que leio, os cientistas afirmam que é o cigarro, na realidade, que produz o câncer. Todas as provas são feitas, todos os dados estatísticos mostram que o número de cancerosos era pequeníssímo, em 1900, quando se fumava muito pouco. A leitura me dá enorme vontade de fumar e, apesar do incêndio que poderei causar, com combinação fogo-oxigênio, acendo unzinho. Que maravilha! A tragada é funda e lenta. O homem tem necessidade de sufocar-se, por isso gosta de tragar funda e lentamente. Minha mulher não fuma e acredita em tudo o que se diz contra os cigarros. Eu também acredito, mas descomponho os cientistas usando este argumento de homem banal:
– Esses caras falam isso porque não fumam. Os culpados são eles, que vivem estudando câncer, noite e dia, e ainda não descobriram nada.
Não há nada melhor do que a gente discutir sem razão, apelando para a ignorância. É como o jogador que aposta sem dinheiro e aposta muito, até o parceiro sair da parada. Minha mulher se cala e me detesta, não sei se por alguns minutos ou se para sempre. Eu também me detesto e vou revezando as tragadas – ora o oxigênio, ora o cigarro. Digo, propositadamente, uma burrice bem irritante:
– Quem garante que o oxigênio também não produz o câncer?
Na vida conjugal, o marido precisa dizer besteiras constantemente. Senão, não é marido. É uma visita. Não só o marido, mas a mulher também precisa dizer besteiras, para que o casamento seja, de fato, um elo indestrutível. Família que diz besteira permanece unida. Nas famílias inteligentes e cultas é maior o número de divórcios e os filhos seguem a carreira diplomática, para estar sempre longe de casa.
Cá estou eu, horizontal. Leio as confissões de Evtuchenko e tenho muita pena dele, quando descobriu que a mãe após a guerra usava peruca. Os alemães lhe rasparam a cabeça. Se raspassem a cabeça de minha mãe (penso), eu iria para a rua, de revólver, e...
Minha mãe, longe daqui, deve estar comendo alguma coisa. Ela está sempre comendo alguma coisa proibida. Saiu a mim. Saiu a mim. Foi a mãe que nasceu mais parecida com o filho. Não houve outra.
Agora, a crônica está pronta e irei para Cabo Frio, onde tenho uma vontade imensa de não ver Brigitte Bardot. Não é por nada. Seria para dizer aos meus netos:
– Olha aqui, eu juro que nunca vi Brigitte Bardot.
Sim, porque eles precisarão ouvir alguma coisa que eu nunca fiz.