Fonte: Seja feliz e faça os outros felizes: as crõnicas de humor de Antônio Maria, Civilização Brasileira, 2005, pp. 63-68. 

Temos que dedicar uma página à presença da malviajada, em todos os momentos da vida e do tempo. Ela está em toda parte, à mesma hora, com o mesmo vestido no corpo, e as mesmas lingeries na alma.

A onipresença da malviajada só foi superada por Deus, mas houve casos em que a malviajada chegou cinco minutos antes do Criador.

Aqui está, amigos, a malviajada. Devíamos dedicar-lhe uma obra de 18 volumes, do tamanho do Tesouro da juventude. Mas não o faremos, porque o jornalismo precisa de ser uma síntese, um resumo, uma conversa rápida, leve e proveitosa, como as do embaixador da Luz Pinto.

1- A MALVIAJADA é aquela que está no bar e pressente, numa fração milesimal de segundo, que vai entrar um homem. Seus olhos se pregam na porta. O homem entra e ela exclama:

– Um pão!

Depois, virando-se para a amiga:

– Me desculpem, mas a mamãe aqui é ninfomaníaca.

2 – A MALVIAJADA é o produto de uma infância marcada por traumas e mais traumas. Foi quase sempre a menina que viu o pai no banheiro com a porta aberta. Então aquele momento da Eternidade seria a origem e a causa de todos os outros. É por isso que uma mulher malviajada nunca está sentada à mesa de bar, de restaurante ou de jogo, sem que seu pezinho não esteja em cima ou embaixo do sapato de um dos presentes. Homem, de preferência. Deputado, para ser perfeito.

Ponha-se, o leitor, à margem de uma mesa de jogo. De pife-pafe, quase sempre. Em cima, a malviajada passa horas sem ir; mas, embaixo, não fica um só minuto sem estar com o pé "sobre" ou "sob" o do parceiro. Procurem observar. Sapato de jogador de pife nunca está suficientemente limpo ou cuidado.

3 – A MALVIAJADA está convencida de que tem uma missão a cumprir. Nas reuniões extrajogo, reuniões de sofá e poltronas, está sempre cruzando e descruzando as pernas. Daí, gastarem (algumas) rios de dinheiros nas lingeries de Dior, Paris, Avenue Montaigne, a um passo do Plaza Athenee.

Ela tem uma missão a cumprir – dizíamos. Nas reuniões sociais, ao voltar do banheiro (vão muito) trazem sempre o número do telefone, escrito com o lápis de sobrancelha, em papel "yes", ou no papel comum dos banheiros, para entregar a quem lhe pareceu mais inteligente. Aquele que, no coquetel, reunia as qualidades principais de um verdadeiro homem: caráter, inteligência e educação.

4 – É VERDADE, leitor. Não existiriam os cronistas sociais se não existisse a malviajada. É ela que lhe fornece a futilidade de que necessita para escrever sua coluna. Ela que lhe diz:

a) – O homem não precisa ser bonito e, sim, ter inteligência e caráter,

b) – Se fosse à Lua, claro, levaria comigo o deputado José Pedroso.

c) – Politicamente, acha que o povo está querendo interromper o progresso, no Estado da Guanabara.

d) – Meus autores prediletos são Kafka, Engels, Menotti del Picchia, Proust e Marília São Paulo de Pena Costa.

E vai por aí.

5 – A MALVIAJADA usa perfume. E o que é pior: de cinco em cinco minutos. Traz consigo, seja como for, um vidro de litro de Replique (de Raphael), para reabastecer-se a cada momento, quando se sente uma pessoa pouco importante naquele simpaticíssimo party. De sua bolsa, quando se abre, sai um vidro que daria para perfumar toda a população da África do Norte. Quando alguém lhe nota o perfume, explica, sorrindo com bem representadíssima humildade maliciosa:

– E você não viu nada.

6 – A VIAGEM da malviajada é um caso muito sério. Começa, seis meses antes, em pensamentos e consultas:

– Que roupa devo levar?

E haja roupa, feita aqui, na Maria Angélica e no Denner, para mostrar a Paris que a mulher brasileira é, de fato, a segunda mais elegante do mundo. Sim, a segunda. Depois da parisiense, que outra mulher nos superaria em elegância? A americana? A argentina? A italiana? Eu sou mais nós.

7 – OS ENGANOS da malviajada nacional, sobre elegância, são comoventes. Nada mais triste que alguns embarques de brasileiras para a primavera em Paris. O que levam, de roupas (leves e pesadas), casacos, tailleurs e, para consternar mais ainda, os chapéus. A brasileira acredita que deve levar alguns chapéus para os almoços de Tour D'Argent.

Não vai nisso nenhum exagero. O que a malviajada brasileira gastou em "excesso de bagagem" nas viagens DE IDA a Paris dava para salvar todo o Norte, todo o Nordeste ... e por que não dizer? ... toda a Índia, da fome e das injustiças sociais.

E de volta? Pensa o leitor que a verba da "Aliança Para o Progresso" é maior que as despesas das malviajadas nacionais, em seus modestos "excessos" de bagagem, quando retoma?

Creia, leitor, a malviajada desde 1950 consumiu mais dinheiro, viajando muito mais, que as construções de Brasília e da hidrelétrica de Três Marias, juntas.

8 – Perdão, leitor, se não nos estendemos devidamente na explicação da malviajada. Ela se considera, antes de tudo, forte. Mais que o sertanejo. Mais que o grupo Simonsen. Mais que a Belgo-Mineira. Mais que o próprio Aloísio Clark Ribeiro.

9 – A VOLTA de uma malviajada. A viagem, contada por ela. As exclamações deste jaez:

a) "O homem italiano é, de fato, perigoso."

b) "Também,o idioma italiano é, por si só, um convite..."

c) "Já o homem francês está perdendo muito..."

d) "Não sei, não, mas um espanhol, quando quer uma coisa, consegue."

e) "Descobrimos um bistrozinho na rive gauche, que é um amor."

10 – LEITOR, não há na rive gauche, nem na rive droite nem na água do Sena, nada mais a descobrir. Paris tem 2 mil anos. Todavia, a malviajada brasileira (o malviajado também) todos os anos descobre um bistrozinho novo. E não contam a ninguém, que é para não estragar.

11 – OS DISCOS... ah, os discos! No capítulo dos discos de uma malviajada, gostaríamos de escrever, no mínimo, o mesmo número de páginas que Zweig escreveu sobre a clausura e a morte de Maria Antonieta. Mas é impossível. Faltam-nos tempo e regalias. No entanto, toda MV que hoje retoma à sua pátria, desembarca cantando, em árabe (está escrito como se pronuncia):

Rava
Laquila rava
Laquila, rava
Laquila beí

E cantando isto recorda-se, langorosamente, de todos os seus pecados.

Lembram-se da canção Love is a many splendored thing? Há três anos, no Sacha's, era este o hino nacional da malviajada. Quando o piano tocava a primeira nota, todos os olhos se semicerravam, todos os pensamentos criavam asas ... e o Atlântico se tornava mais estreito que o canal da Visconde de Albuquerque.

Um bom fim de semana para todas as bem-viajadas do Brasil!

antonio-maria