Avenida Central, atual avenida Rio Branco, Rio de Janeiro-RJ, 1907 circa. Foto de Marc Ferrez. Arquivo-Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Cumpria-se na rua do Ouvidor uma lei que obrigava todo cidadão carioca a falar por oxítonas. Trocava-se o bom-dia pelo “bonjour” sem medo de desbotar a última flor do Lácio. Era preciso abrir a avenida Central, botar abaixo cortiços e sobrados, erradicar peste e cólera. No bruaá da confeitaria Colombo, tudo era assunto. Santos Dumont e o 14-BIS, os bafafás dos salões literários, as maravilhas do polvilho antisséptico Granado. Vestida de República, a modernidade batia à porta do Brasil sem uma gramática normativa. Ordem e Progresso: as reformas urbanas do prefeito Pereira Passos ambicionavam transformar o Rio de Janeiro em uma “Paris Tropical”.
O livro A alma encantadora das ruas (1908), de João do Rio, amadureceu como um documento precioso da belle époque carioca. Tornou-se símbolo do pioneirismo do escritor, que concebeu a rua como campo etnográfico do repórter. A imprensa passou a mediar o discurso dos diferentes atores políticos da época, conforme o público demandava. A percepção de João do Rio é caudatária da Proclamação da República, período histórico em que as relações sociais se tornaram espetáculos no conjunto urbanístico em transformação. Nesse sentido, o positivismo em voga no início do século XX não ordenou a linguagem moderna, mas escancarou as desigualdades do Rio de Janeiro. A alma encantadora das ruas traz um registro do submundo carioca, até então ignorado pelos artigos de fundo dos jornais.
Dividida em cinco partes – “A rua”, “O que se vê nas ruas”, “Três aspectos da miséria”, “Onde às vezes termina a rua” e “A musa das ruas” – a obra tem estrutura decrescente, uma vez que a superfície da urbe é apenas a primeira impressão do autor, cuja incursão pela cidade delimita os personagens marginalizados. Na primeira e na última parte, João do Rio personifica a rua, em conclamação deslumbrada. O corpo vivo de sua literatura ouve o canto das musas, curiosamente evocado apenas no último capítulo. Em “A rua”, o autor manifesta o seu processo criativo:
Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos de flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar.
Alma de repórter
Nascido em 8 de agosto de 1881, João Paulo Alberto Coelho Barreto recebeu o sacramento de apresentação na Igreja Positivista Brasileira, satisfazendo o desejo do pai, homem profundamente religioso. Com 18 anos incompletos, publicou seu primeiro artigo na imprensa, uma crítica de teatro no jornal A Tribuna. O escritor flanava pelas ruas do Rio de Janeiro como um dândi – cabelo gomalinado, monóculo e sempre de colarinho verdeau. Expoente da crônica brasileira, João do Rio colaborou com diversos jornais, como O Paiz, O Dia, Correio Mercantil e Gazeta de Notícias, usando muitos pseudônimos – Joe, Claude, Caran d’Ache e José Antônio José. Aos 23 anos, Paulo Barreto adotou o pseudônimo João do Rio, pelo qual ficaria mais conhecido.
Se a definição de crônica é assunto a ser evitado, o gênero literário de A alma encantadora das ruas é novidade. João do Rio inventa a tradição da reportagem moderna em um gênero híbrido: a crônica-reportagem. Considerando a crônica como gênero jornalístico, pode-se afirmar que o livro documenta a belle époque carioca à luz de técnicas de reportagem empregadas até hoje. A primeira delas é a curiosidade como vetor criativo. A obra de João do Rio funda-se nos cinco sentidos do autor imerso no Rio de Janeiro, que ilumina fragmentos de sua vivência na cidade moderna. Surge o que chamamos de cobertura in loco, como percebemos no excerto de “Os tatuadores”:
Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras – a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.
Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão, o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.
João do Rio interessa-se pelo surgimento das pequenas profissões, que ocupam espaço nas ruas do Rio de Janeiro. Para o autor, a tatuagem é motivo para “o mais variado estudo da crendice”, capaz de refletir a vida social das classes empobrecidas. A materialização do fenômeno cultural está no personagem Madruga, que gravava na pele as iniciais das suas namoradas a cada relacionamento. A fugacidade com que as iniciais são remendadas imprime certa comicidade à crônica, somente escrita porque Madruga fornece ao autor “o seu profundo saber”. A curiosidade de João do Rio é proporcional à descentralização do conhecimento na cidade moderna. Desse modo, o diálogo empreendido por escritor e personagem se torna o que hoje conhecemos como entrevista.
Não obstante, o cronista preocupa-se em detalhar os preços cobrados pelos tatuadores, evidenciando a cobertura local em um processo de apuração de informações. João do Rio confirma a relevância do tema, quando revela a demanda por desenhos de armas da Monarquia e da República, deixando nítida a transitoriedade política do país – e a forte presença do cristianismo em “há Cristos para todos os preços”.
À época, era clara a simbiose entre literatura e jornalismo nas páginas dos principais jornais do país. João do Rio, no entanto, é o agente de uma transformação na história da imprensa brasileira. O progressivo desaparecimento dos artigos de fundo em detrimento das reportagens é sintoma da “desliteraturização” jornalística. Nesse sentido, os escritores passam a se refugiar em revistas ilustradas, que abrigam boa parte da produção literária. Nos jornais, ao contrário, observa-se o triunfo da notícia.
Além de produzir textos informativos, o cronista João do Rio tinha a atitude de um repórter, na medida em que A alma encantadora das ruas iluminou fenômenos sociais ignorados por escritores contemporâneos, que celebravam a modernização da “Paris Tropical”. Não por acaso, os entrevistados de sua obra são personagens em franjas do tecido social, símbolos da exclusão ocasionada pela modernização da cidade. Ressalta-se, porém, que o tom noticioso das crônicas de João do Rio convive com um admirável lirismo, como observamos no parágrafo final de “Velhos cocheiros”, em que o autor utiliza metáforas e comparações para descrever a vivacidade das ruas. “A praça vibrava numa estrepitosa animação, os combustíveis reverberavam em iluminações fantásticas, e só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste foice do seu crescente.”
Ao mesmo tempo, o repórter aparece na denúncia das condições subumanas de trabalho na belle époque carioca. Em “A fome negra”, João do Rio acompanha a jornada de homens que trabalhavam em depósitos de manganês e carvão:
Estávamos na ilha da Conceição, no trecho hoje denominado – a Fome Negra. Há ali um grande depósito de manganês e, do outro lado da pedreira que separa a ilha, um depósito de carvão. (...) Para além, no mar tranquilo, outras ilhas surgem, onde o trabalho escorcha e esmaga centenas de homens. (...)
Quando chega vapor, de novo removem o pedregulho para os saveiros e de lá para o porão dos navios. Esse trabalho é contínuo, não tem descanso. Os depósitos cheios, sem trabalho de carga para os navios, os trabalhadores atiram-se à pedreira, à rocha viva. Trabalha-se dez horas por dia com pequenos intervalos para as refeições, e ganha-se cinco mil réis. (...)
É uma espécie de gente essa que serve às descargas do carvão e do minério e povoa as ilhas industriais da baía, seres embrutecidos, apanhados a dedos, incapazes de ter ideias.(...)
Não têm nervos, têm molas; não têm cérebros, têm músculos hipertrofiados.
Para João do Rio, a linguagem poética e comunicativa não são antonímias, mas faces da mesma moeda. Portanto, as imagens que expõem a desigualdade entre a confeitaria Colombo e a ilha da Conceição não retiram o peso noticioso da crônica, não sendo capazes de amofinar a rotina dos trabalhadores.
Talvez a belle époque tenha sido o período de maior influência da cultura francesa no Brasil. A literatura não seria indiferente aos galicismos da rua do Ouvidor. Ao longo do tempo, a crítica observou a influência, nas crônicas de João do Rio, dos romances naturalistas de Émile Zola (1840-1802), autor de Germinal (1885). De fato, em “A fome negra”, percebemos a animalização do ser humano – “(...) seres embrutecidos, apanhados a dedos, incapazes de ter ideias” –, característica do projeto naturalista, que reforça a automação das massas trabalhadoras e se aplica à objetividade presente no foco narrativo do texto jornalístico. Contudo, o escritor naturalista não é figura preponderante entre as influências francesas do cronista do Rio de Janeiro.
Do homo faber ao homo cinematographicus
Em uma linha, a belle époque pode ser definida como o período histórico em que o ser humano se entusiasmou com a sua própria inteligência. A inauguração de uma torre de 324 metros de altura no centro do Champs de Mars, por ocasião da exposição universal de 1889, comprova o otimismo vigente na época em que Paris era habitada por Cézanne, Gauguin e Monet. Forjada em ferro e aço, a Torre Eiffel tem em sua estrutura componentes centrais do art nouveau, movimento artístico que simbolizou a crença no progresso da humanidade. A euforia do homo faber – o homem que fabrica – propiciou uma era de invenções: o avião, o automóvel, o telégrafo sem fio, o cinema. O mundo acelerava-se.
Na ilusão cientificista, o homem celebrou o mundo moderno como a era da artificialidade e da estética – a ciência da percepção –, de tal modo que suas invenções passaram a assegurar a própria identidade humana. A projeção de uma “Paris Tropical” ecoou a euforia do positivismo na construção de símbolos da cidade do Rio de Janeiro, como o Theatro Municipal e o Palácio Monroe – demolido em 1976.
As crônicas de A alma encantadora das ruas são alicerçadas a partir da mobilidade social de João do Rio, repórter que frequenta os chás da Colombo, mas caminha pelas ruínas da modernidade. Seu dinamismo no tecido social deve-se à sua própria fabricação em flâneur e dândi. Negro e homossexual, João do Rio refletiu o paradoxo da belle époque carioca, adotando as mesmas transfigurações do poeta francês Charles Baudelaire, influência anterior ao naturalismo de Zola. Como demonstrei em artigo para o Correio IMS, a poesia do autor de As flores do mal nasce de um ver-para-crer, estimulado pela flânerie, em que o poeta resguarda sua identidade, em diferentes contextos, com sua postura adandinada. A modernidade é, portanto, a era dos paraísos artificiais. Em consequência, as populações marginalizadas sucumbem aos efeitos das drogas, que alargam os sentidos hipertrofiados pelo cotidiano de choques e reações instintivas da cidade. Em O poema do haxixe (1860), Baudelaire previra os efeitos do vício:
Essa acuidade de pensamento, esse entusiasmo dos sentidos e do espírito, devem ter aparecido ao homem, em todos os tempos, como o primeiro dos bens; por isso, considerando apenas a volúpia imediata, ele, sem se inquietar por violar as leis da sua constituição, procurou na ciência física, na farmacologia, nas bebidas mais grosseiras, nos perfumes mais sutis, sob todos os climas e em todos os tempos, os meios de fugir, ainda que por algumas horas apenas, de seu habitáculo de lama e, como diz o autor de Lazare, “arrebatar o paraíso de um só golpe”. Ai! Os vícios do homem, por mais cheios de horror que suponhamos, contêm a prova (não fosse por sua infinita expansão!) do gosto dele pelo infinito.
O interesse de João do Rio pelos “chins” viciados em ópio não é mera coincidência. Na crônica “Visões d’ópio”, em um dos grandes momentos de A alma encantadora das ruas, o autor desce aos infernos para testemunhar os horrores das drogas:
Há uma vasta sala estreita e comprida, inteiramente em treva. A atmosfera pesada, oleosa, quase sufoca. (...) A custo nossos olhos acostumam-se à escuridão, acompanham a candelária de luzes até o fim, até uma alta parede encardida, e descobrem em cada mesa um cachimbo grande e um corpo amarelo, nu da cintura para cima, corpo que se levanta assustado, contorcionando os braços moles. Há chins magros, chins gordos, de cabelo branco, de caras despeladas (...). O ambiente tem um cheiro inenarrável, os corpos movem-se como larvas de um pesadelo.
O cronista une a objetividade do repórter ao lirismo baudelairiano para descrever os “comedores de ópio”. João do Rio, ressalta-se, não é um imitador da literatura francesa, pois a fabricação denuncia que seu pioneirismo estilístico é fenômeno essencialmente brasileiro. Se Baudelaire é o pintor da vida moderna, João do Rio atua como um perito. A imagem, no entanto, é plasma compartilhado na esfera pública da modernidade. Assim, poeta e repórter têm no ver-para-crer a gênese da poesia e do jornalismo.
Ainda que a primeira pessoa do singular seja reincidente em A alma encantadora das ruas, o foco narrativo em terceira pessoa, como no caso de “Visões d’Ópio”, oferece o olhar distanciado e sóbrio, característica do bom jornalismo. Pelo olhar, também desvendamos que o repórter não apenas documenta a marginalidade como precisa estar à margem da história, sendo também figura marginal.
Na verdade, João do Rio é dotado de certa antevisão, na medida em que expressa a consciência de ser homo cinematographicus – homem cinematográfico. Filhas da cidade e do tempo, a crônica e a reportagem são os gêneros exemplares do mundo moderno, como João do Rio demonstra em “A pressa de acabar”, texto incluído no livro Cinematógrafo: crônicas cariocas (2009):
O homem cinematográfico resolveu a suprema insanidade: encher o tempo, atopetar o tempo, abarrotar o tempo, paralisar o tempo para chegar antes dele. Todos os dias, (dias em que ele não vê a beleza do sol ou do céu e a doçura das árvores porque não tem tempo, diariamente, nesse número de horas retalhadas em minutos e segundos que uma população de relógios marca, registra e desfia) — o pobre-diabo sua, labuta, desespera com os olhos fitos nesse hipotético poste de chegada que é a miragem da ilusão.
No dia 2 de junho de 1921, João do Rio, o homo cinematographicus, saiu da redação de seu jornal, A Pátria, e tomou um táxi. Sofreu um infarto fulminante, morrendo dentro do carro na rua Bento Lisboa, no Flamengo. Ao enterro do homem que tinha a cidade no nome, compareceram cem mil pessoas. Aos 41 anos, João do Rio morreu lúcido, sabendo de sua principal comorbidade, como declarou certa vez em entrevista:
O repórter não tem família. E, para o público, que nem se apercebe de quanto custou o jornal, desesperam-se todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os segundos, batalhões de homens. Não têm futuro senão o do dia seguinte. Que lhes importa? O diabo os anima. E, se com todas as profissões há a esperança de ser rico – a mais nobre e a mais digna de todas as esperanças –, se no comércio a sociedade espera-nos, se na burocracia a chefia da seção é a meta, no jornalismo o fim é acabar inútil, sem ânimo para correr, atirado para o canto como um bagaço.
*Gustavo Zeitel é jornalista e colaborador do Correio IMS, site do Instituto Moreira Salles. Também colabora com as revistas piauí, Quatro Cinco Um e Veja Rio, entre outros veículos de imprensa.