O ramo cronista de Graciliano
Mesmo apresentando-se como um cronista irregular e esporádico, Graciliano Ramos (1892-1953), autor usualmente valorizado por seus incontornáveis romances e livros memorialísticos, pode ser incluído entre os grandes nomes da crônica nacional. O crítico Alfredo Bosi lembra que muitos dos textos do escritor alagoano situados entre a literatura e o jornalismo elevam-se à categoria de obras-primas, continuando de modo seguro a melhor tradição brasileira no gênero, cuja fonte principal seria Machado de Assis.
A atividade do escritor alagoano como cronista tem início no começo de 1915, depois de ele ter deixado Palmeira dos Índios (AL), em agosto do ano anterior, aos 22 anos, e ter migrado para o Rio de Janeiro, com o propósito de encontrar alguma atividade na imprensa. De modo infrequente, ela prossegue até 1952, ano anterior ao da sua morte, quando ele novamente residia na então capital federal e já era um artista consagrado. Ao longo desse intervalo de quase quatro décadas, quer encoberto por pseudônimos, quer se valendo da assinatura que o consagrou; quer escrevendo para periódicos regionais, quer para veículos de escopo nacional; quer praticando o discurso irônico como forma de reflexão a respeito do cotidiano, quer abandonando o tom zombeteiro e privilegiando a abordagem da vida literária nacional e de seu passado sertanejo, a atuação de Graciliano se revela plural em todos os sentidos.
As pouco mais de duzentas crônicas que publicou na imprensa encontram-se essencialmente reunidas em três volumes, todos editados postumamente: Linhas tortas (1962), Viventes das Alagoas (1962) e Garranchos (2012). Se o primeiro e terceiro têm uma proposta mais documental do que seletiva, propondo-se a abarcar o amplo período de produção do autor, o segundo apresenta um caráter temático. Os próprios títulos das coletâneas ajudam a compreender tais especificidades.
Linhas tortas e Garranchos, também nomes de seções antes comandadas por Graciliano Ramos em diferentes publicações, aludem a uma suposta precariedade dos escritos que agrupam, reverberando uma postura de pseudorrebaixamento bem ajustada ao mister do cronista que procura a um só tempo justificar e dignificar seu gesto de escritura feito ao “correr da pena”. Ao mesmo tempo, servem de guarda-chuva para a recolha de uma gama diversificada de textos quer quanto ao assunto, quer quanto à temática, quer quanto ao momento e ao local de publicação, quer quanto às marcas de autoria.
Já Viventes das Alagoas se destaca como uma grande miscelânea de textos de temática sertaneja, dispostos sem uma ordem aparente e escritos, sobretudo, após a saída de Graciliano da prisão em 1937 e de sua fixação no Rio de Janeiro. O título da obra indica o predomínio da descrição de figuras humanas, mas também sugere certa brutalização destas. Já o topônimo “Alagoas” localiza e restringe a origem dos seres representados, embora o artista não tenha se limitado a seu Estado natal, como indica o subtítulo do livro: “Quadros e Costumes do Nordeste”, retirado da seção de mesmo nome comandada pelo escritor em Cultura Política, principal veículo de doutrinação política e ideológica do Estado Novo.
Ao todo, Graciliano publicou 25 crônicas nessa revista mensal, conjunto representativo que corresponde a sua colaboração mais sistemática e duradoura em um único periódico. Nesses textos, costuma orientar-se por um efeito de ficção, fazendo com que tais produções se aproximassem do conto e do retrato, seja de tipos, seja de situações. Ao mesmo tempo, o escritor flerta com a crônica antiga, na medida em que, já afastado geográfica e temporalmente dos espaços e personagens retratados, volta seus olhos para um passado mais distante, procurando representar em chave crítica o atraso melancólico e as tradições do sertão arruinado, praticamente à margem da história.
Como um rio intermitente comum ao semiárido de sua região de origem, Graciliano Ramos teve uma produção cronística descontínua, mas multifacetada, distribuída por diferentes momentos de sua trajetória. Se no início prevalece a galhofa, a interlocução com o público e a extração de reflexões sociais e existenciais a partir de miudezas cotidianas, aos poucos o ficcionista vai absorvendo o cronista e seus textos de imprensa caminham em direção ao conto, ao artigo e ao relato memorialístico, bem ao sabor da própria fluidez do gênero crônica. Apesar da dispersão, tais escritos ajudaram a alimentar o rio caudaloso da prosa do autor, composto por Vidas secas e Memórias do cárcere, entre outros livros fundamentais para a interpretação do país, ao mesmo tempo em que desmistificam alguns elementos de sua percepção de mundo e de sua criação literária, fazendo com que ele se humanize de modo ainda mais escancarado diante do leitor.
Thiago Mio Salla
1892
1895
1899
1904
1905
1906
1907
1909
1910
1914
1915
1916
1920
1921
1927
1928
1929
1930
1931
1932
1933
1934
1936
1937
1938
1940
1941
1942
1944
1945
1946
1947
1950
1951
1952
1953
1954
1957
1962
1980
2012
2014
2017
2024
* Thiago Mio Salla, responsável por esta cronologia, é professor da Universidade de São Paulo, editor e crítico literário. Publicou Garranchos — textos inéditos de Graciliano Ramos (Record, 2012), entre inúmeros outros livros e ensaios dedicados ao autor de Vidas secas. Atualmente edita a coleção das obras completas de Graciliano Ramos pela editora paulistana Todavia.